João Doria e a privatização dos presídios paulistas: a quem interessa?

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Foto por Michael Melo
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Na última semana a enxurrada de idas e vindas do governo Bolsonaro e a novela envolvendo um de seus filhos, Flávio Bolsonaro, no caso Queiroz, fez passar quase que desapercebidos os primeiros passos do novo governador de São Paulo, João Doria. Como já era esperado, ele começa a tirar do papel uma das suas principais bandeiras de campanha: a privatização de uma série de empresas e serviços públicos do estado.

Logo de cara, chama a atenção qual foi uma das primeiras áreas a entrar no programa de “desestatização” do ex-prefeito e agora governador: a administração dos presídios. Doria anunciou que, de início, quatro das doze novas penitenciárias em construção no estado serão concedidas a iniciativa privada através de PPPs (Parceria Público-Privadas). Vale lembrar que esse tipo de concessão não é novidade no estado de São Paulo, governado pelo PSDB há 25 anos: a Linha-4 Amarela do metrô, administrada pela concessionária ViaQuatro do grupo CCR, é fruto de parceria da mesma natureza, que está longe de ser unanimidade no que se refere a ser de fato vantajosa para o erário público. O tipo de PPP a ser utilizada no caso dos presídios ainda está sendo analisada, segundo a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária).

Durante seu discurso, o governador falou em “basear a gestão em critérios de qualidade” visando o “melhoramento das condições do apenado”, complementando que aos poucos todos os presídios do estado seriam privatizados (algo desmentido depois por seu vice-governador e chefe de governo, Rodrigo Garcia, mostrando que não é exclusividade do governo federal a prática de dizer e desdizer logo depois…). O modelo a ser seguido por Doria será importado dos EUA, e já tem uma primeira experiência em território nacional: o presídio de Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte. Apesar da forte fiscalização do estado, e de fato apresentar melhores condições para os detentos (eles trabalham, estudam, participam de cursos profissionalizantes, oficinas de arte e cinema) esse sistema traz um sério risco de fundo, apresentado por diversos especialistas no assunto: transformar a política de encarceramento em negócio.

O objetivo de uma empresa é sempre o lucro, que nesse caso está diretamente ligado ao encarceramento, e este, por sua vez, está conectado a criminalidade. Dessa forma, existe um risco de se privilegiar esse tipo de política, bastante problemática, abandonando outras alternativas de combate à criminalidade, em nome de interesses privados. E sabe-se exatamente quem é o “público-alvo” do negócio no Brasil: negros, pobres e periféricos, que representam hoje em torno de dois terços da população carcerária no país. Nos EUA, essa mesma questão é colocada pelos especialistas, que criticam o modelo privado de gestão penitenciária. Lá também existe um “público alvo”: 65% dos imigrantes presos estão nas mãos da iniciativa privada, e o negócio só se expandiu desde a posse de Donald Trump e sua política anti-imigração. Logo, o estado de São Paulo e seu governador estão prestes a importar um modelo que se apresenta como dilema inclusive no seu país de origem…

A principal ideia por trás da obsessão (não existe palavra melhor para definir) de João Doria pelo modelo de privatização das estruturas públicas, é uma pretensa excelência da gestão empresarial privada, que se contrapõe a ineficiência do estado. Sem entrar no mérito do quanto essa ideia é uma mistificação liberal, vejamos um outro modelo de gestão carcerária que vem crescendo no Brasil e que foge ao modelo empresarial.

A APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), entidade civil sem fins lucrativos encabeçada pela Fbac (Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados), vem expandindo a sua atuação país afora nos últimos anos, pretendendo chegar a 200 unidades prisionais até 2020. Seu modelo de prisão humanizada, focada no desenvolvimento da espiritualidade e no estreitamento dos laços familiares, coloca em xeque as facções criminosas e também o modelo de “prisão negócio”. Nos 48 centros de reintegração social sob os cuidados da entidade não há policiais e nem armas, e os presos são responsáveis pela disciplina, pela comida e limpeza do local. Cada unidade tem um limite de 200 detentos e apresenta um custo dois terços menor e 20% de reincidência criminal contra 85% do sistema prisional tradicional. A experiência nasceu no interior de Minas Gerais, se expandindo posteriormente para o Maranhão, durante os mandatos dos governadores Antônio Anastasia (PSDB) e Flávio Dino (PCdoB), respectivamente. Hoje já existe um plano de expansão da experiência para os estados de Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Maranhão e Amapá.

Dessa forma, fica bastante claro que as melhorias de fato necessárias no sistema penitenciário do país não precisam passar de forma obrigatória pelo modelo privado e empresarial de gestão. É de se questionar essa ânsia do governo Doria em escolher pelo modelo de PPP, longe de ser unânime entre os especialistas e com uma série de questões de fundo que não podem ser ignoradas. A troco de quê? E para quem? Vale ainda ressaltar que não fica nem um pouco claro como a gestão empresarial lidaria, por exemplo, com o problema das facções nos presídios, questão no mínimo controversa para os tucanos, inclusive pelos indícios de acordo entre o governo paulista e a principal facção do estado e do país.

Dentro dessa questão, resta saber qual é a prioridade do governador João Doria: a efetiva melhoria das condições dos detentos, que propicie a sua reabilitação, ou a garantia de lucros para determinados grupos econômicos que só teriam a ganhar com o encarceramento em massa? O que está em jogo aqui são milhares de vida das camadas mais vulneráveis da nossa população. Dado o histórico do ex-prefeito e agora governador, não é difícil chegar a uma resposta. Uma coisa é certa: a questão penitenciária precisa ser enfrentada, mas com políticas públicas sérias e bem pensadas, e não com jogadas de marketing e oportunismo. Os bons exemplos estão aí, basta seriedade política para segui-los.