A defesa do direito ilegal e o ocaso do in dubio

Ségio Moro. A defesa do direito ilegal e o ocaso do in dubio
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No último domingo (8), vimos diversos fatos improváveis acontecerem: aplausos à força por quem defendia a legalidade; suplícios à lei por quem somente dependia da força; juiz de primeira instância negando cumprimento à decisão judicial de superior hierarquia; juiz e desembargador trabalhando em férias e folga; diversas decisões judiciais (tanto em primeira, quanto em segunda instâncias) serem prolatadas em questão de horas. Por pouco, quase não prevalece a voz de quem gritou mais alto (como é o costume brasileiro há certo tempo). Prevaleceu, contudo.

Como sempre, faz-se necessária a retomada cronológica dos fatos em linha para compreensão do todo. Durante a semana iniciada, segundo o que apontado na própria decisão de concessão da liminar ao habeas corpus, houve pedidos de transferência do ex‑presidente Lula a local mais próximo de sua família, bem como pedidos de relaxamento da prisão em razão da corrida eleitoral ao qual ele é pré-candidato. O habeas corpus foi distribuído no final de semana, não havendo possibilidade de distribuição ao relator dos processos originários. Portanto, houve distribuição em plantão, para julgamento urgente (por se tratar de liberdade de um réu preso).

A decisão que concedeu o habeas corpus entendeu que havia fato novo a ser julgado e, então, apreciou o feito e – por suas razões – entendeu por libertar o ex-presidente. A decisão foi encaminhada para cumprimento a quem detém competência sobre a execução provisória da pena: a juíza ou o juiz de primeira instância que ordenou a prisão (se definitiva a execução – ou seja, após o trânsito em julgado –, seria o juízo das execuções penais). Nisto, poderia se imaginar que decisão de liberação ou encaminhada ao famigerado magistrado que protagoniza (apesar das necessárias impessoalidade e imparcialidade) capas de revistas e jornais (muitas pensando num duelo entre julgador e réu).

Contudo, o famoso juiz de Curitiba está de férias até o final de julho (conforme publicações do Judiciário local). Assim, natural que a ordem do plantonista da segunda instância fosse possivelmente encaminhada a duas pessoas: o plantonista de primeira instância (por se tratar de um domingo), ou a magistrada/o magistrado que substituía as férias daquele. Natural, também, que houvesse um famoso despacho (em razão da hierarquia entre as instâncias): “cumpra-se”. Após tal despacho – e seu devido cumprimento pelos órgãos oficiais – os inconformados com as decisões poderiam recorrer, ou aguardar o julgamento do mérito pela competente turma de desembargadores da Justiça Federal.

Surpresos ficaram todos que esperam, que no Brasil, haja o simples cumprimento das leis, ainda mais quando há envolvimento político e forte comoção nacional (para todos os lados possíveis). O despacho que ocorreu em seguida à decisão do desembargador plantonista foi pelo “não cumprimento”, com a justificativa de que aquele não seria o juízo competente (por se tratar de plantão e não da turma que condenou o ex-presidente em segunda instância). Surpreende-se quem pensa (corretamente) que um juiz não poderia contrariar ordem de desembargador que, hierarquicamente, encontra-se acima daquele. Porém, surpresa maior foi a de quem proferiu o despacho: o juiz-protagonista. Mostrou-se ao brasileiro que se deve trabalhar por suas convicções, contrariando ordens superiores, mesmo durante as férias e à distância (segundo afirma o jornal Valor Econômico, o juiz estaria em Portugal – bendita a tecnologia da justiça federal).

No mesmo despacho, o juiz solicitou* que o processo fosse encaminhado para o desembargador relator dos recursos em segunda instância relativos ao caso originário. Este, por sua vez, confirmou que a competência era sua, pois não havia qualquer fato novo. Provocado a se manifestar, o presidente do Tribunal confirmou que o desembargador relator era competente. Tanto para o presidente do Tribunal quanto para o desembargador relator, o fato de haver registro da pré-candidatura do ex-presidente Lula à corrida presidencial deste ano não configura fato novo. Entenderam isso, porque há meses o Partido dos Trabalhadores (PT) anuncia em eventos e em diversas plataformas de mídia que o ex-presidente será candidato e pré-candidato. Também, entenderam que não se poderia apresentar habeas corpus, mas pedidos ou recursos próprios à segunda instância, pois quem originalmente ordenou a prisão do ex-presidente foi o Tribunal, sendo o juiz-protagonista apenas cumpridor da decisão.

Tudo isso girou em torno da liminar concedida. O julgamento do mérito do habeas corpus ainda ocorrerá, pelo órgão julgador que condenou o ex-presidente em segunda instância.

Como era de se esperar, quem estava favorável à manutenção da prisão do ex-presidente iniciou uma devassa na vida do desembargador plantonista. Logo, descobriu-se que ele foi filiado ao PT, pertencendo ativamente aos governos do partido e sendo indicado a desembargador pelo quinto constitucional (antes era advogado) pela ex-presidenta Dilma Rousseff. Há, inclusive, representação contra ele no CNJ – o que animou diversas páginas contrárias ao ex-presidente. Esse fato foi rapidamente defendido por quem era contrário à manutenção da prisão do ex-presidente: a indicação de um advogado ao quinto constitucional dos Tribunais Federais é um procedimento padrão; não há razão para parcialidade de um magistrado apenas pelo seu passado ter sido próximo a um partido político, desde que o magistrado dê motivação legal às suas decisões.

Há muito que se questionar nisso tudo.

Se o juiz apenas cumpriu a ordem de prisão, porque questionou a ordem de soltura?

O que se viu é o que costuma ocorrer cotidianamente no Judiciário: decide-se e somente depois buscam-se razões para justificar a decisão. Inquestionavelmente, as vontades e convicções de quem tem poder – quando se é necessário utilizar deste poder – é o que prevalece. Tolice falar em politização do judiciário, dos processos judiciais ou do direito. O judiciário é feito de tomada de decisões – é, portanto, eminentemente político. O controle dessas decisões, seja pela legalidade, seja pela publicidade ou pela transparência, não é um modo de torná-lo menos político, mas somente um modo político (teoricamente democrático) de tentar torná-lo mais equânime.

Há quem diga que o juiz fez o que fez (e faz o que faz) por suas convicções políticas contrárias ao presidente. Daí, justifica-se que o juiz-protagonista tem familiares filiados ao partido historicamente de oposição ao PT, e aparece em eventos com políticos desta e de outras oposições a tal partido. Então, pergunta-se: o partido ao qual mais se aproxima (ou ao qual se vincula) o julgador é ou não um problema para a decisão prolatada?

Se tal vinculação/aproximação é um problema, há também problema na ordem de soltura do ex-presidente. Se não, há que se buscar razões maiores para tais afirmações (não que faltem essas razões, mas sempre se utiliza do direito essencialmente formal como blindagem).

De toda forma, aplaude-se o que, até então, era criticado – em ambos os lados da nossa já conhecida polarização política.

Pode um desembargador abdicar de sua folga dominical somente para desfazer a decisão do plantonista (não há outro motivo)? Talvez o intervalo da Copa do Mundo ou a ausência recente do Brasil na competição tenham tirado a graça de um domingo de folga. Porém, é mais certo que o desembargador relator tenha ido ocupar sua poltrona para manter a altura do grito já estabelecido no TRF-4 (grito que ganhou as decisões anteriores, sempre todas muito rápidas).

As duas perguntas mais importantes ainda restam a se fazer.

Pode um juiz hierarquicamente subordinado a um Tribunal questionar ou desafiar decisão deste Tribunal? Lembramos que juiz não é parte, não pode interpor recurso ou questionar a competência de órgão superior a si próprio – pode, sim, questionar a competência de órgão ao qual não está subordinado ou de igual hierarquia. Pareceria bastante estranho que isso ocorresse, não fossem as personagens envolvidas: o ex-presidente mais amado e mais odiado do Brasil, e o juiz-protagonista (que lhe é antagonista segundo as maiores mídias do país). Portanto, ressaltando a própria ideia de que a prisão é política, é possível que o juiz utilize do direito para defender a ilegalidade, desde que seja contra um determinado réu.

Contudo, se direito for aquilo que os tribunais dizem que é, se prevalece a filosofia da consciência (e o direito apenas como forma e linguagem), então o que o juiz-protagonista disser ou fizer é lei – e, somente assim, ele não contraria jamais a lei.

A última pergunta (e única essencial ao caso jurídico): Há ou não há fato novo? O que ficou certo nas decisões é que a alegação de fato novo se reduz à pré-candidatura. O desembargador plantonista entendeu o que o direito diz: só é pré-candidato quem é assim registrado junto aos órgãos competentes (Tribunais Eleitorais). Os demais desembargadores envolvidos entenderam que: é pré-candidato quem for assim indicado em eventos do partido ou em mídias pelo partido. Ora, para desmistificar isso é necessário ir mais afundo neste questionamento: quem for lançado pelo partido como pré-candidato, mas não for registrado, poderá ser candidato futuramente? Se a resposta dos desembargadores for não, há fato novo; se, e somente se, a resposta for positiva (o que causará mais um absurdo no direito brasileiro), não há fato novo e o plantonista nada poderia julgar em relação aos pedidos.

Novamente discute-se diversas possibilidades ante decisões referentes ao direito penal, políticas ou judiciais. Ora, se há mais de uma interpretação possível seria necessário utilizar o princípio do in dubio pro reo e fazer com que prevaleça, ainda que momentaneamente, a interpretação mais favorável a quem está preso. Nisto, deve-se pensar em relação a qualquer pessoa, mas não se trata de julgar qualquer pessoa quando se fala no ex-presidente – foge-se da imparcialidade e da impessoalidade. Todavia, ressaltar a necessidade do in dubio neste caso é questão menor – pelo menos quando se lembra que, em 2016, o direito brasileiro permitiu que se efetivassem as consequências de um crime, quando não havia sequer a certeza do cometimento de um crime, para a então Presidenta da República.

O que se vê hoje no Brasil é a efetivação do poder político no judiciário, bem como o crepúsculo dos princípios mais basilares para o mínimo de humanização no direito.

* Tendo em vista o “toma lá, dá cá” do Judiciário brasileiro, não chamaremos as decisões judiciais de ordens.