Componentes estruturais e conjunturais da crise cubana

Componentes estruturais e conjunturais da crise cubana
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Por Cesar Benjamin – De volta ao Rio, sinto vontade de escrever um pouco sobre a crise cubana.

A meu ver, detratores e defensores de Cuba erram ao não destacar algo fundamental: Cuba é uma sociedade que está mudando em grande velocidade, potencialmente para melhor, mas imersa numa profunda crise econômica, que tem componentes estruturais e conjunturais. Entre os primeiros, está o fato de ser uma economia com pouquíssimos recursos naturais e com baixa produtividade média do trabalho. Entre os segundos, destacam-se o colapso do turismo na pandemia, que eliminou subitamente a mais importante fonte de renda do país, e o enorme aperto do bloqueio americano. Mas, insisto, o país se move.

Para ficar em alguns exemplos, nos últimos anos, Cuba:

1. Aprovou uma nova Constituição, depois de dois anos de intensos debates. A nova arquitetura institucional descentraliza fortemente o poder e formaliza um “Estado socialista de direito”. Oito em cada dez cubanos participaram da votação final, num país em que o voto é facultativo.

2. Multiplicou as formas de propriedade, com ênfase no trabalho por conta própria, na pequena propriedade privada e nas cooperativas, reservando certas áreas estratégicas ao Estado.

3. Passou a funcionar como uma sociedade em rede, universalizando o uso de aparelhos celulares, com completa liberdade de acesso a redes sociais, nacionais e estrangeiras. É fácil imaginar o impacto disso na vida da sociedade, especialmente entre os jovens. Muitas instituições anteriores tornaram-se obsoletas.

4. Depois de décadas, reunificou a moeda nacional, uma medida necessária, mas traumática no curto prazo, principalmente para a importante parcela da população que tinha acesso ao peso dolarizado. O sistema de preços está experimentando um profundo realinhamento, na forma de inflação, algo que os cubanos desconheciam.

Esta sociedade em rápida mutação não cabe nas divisões em dois blocos mais ou menos homogêneos, pró e contra o regime. As clivagens são muito mais complexas, em um país que conta com uma opinião pública culta, diversificada e politizada. As igrejas (Católica e protestantes) têm peso considerável.

Está em curso uma transição geracional. Os adultos de hoje não participaram do processo revolucionário original, e os jovens só conheceram uma economia em sucessivas crises. Muitos estão cansados, com boas razões. As redes sociais ecoam e amplificam esse sentimento, para o bem e para o mal, lá como aqui. Nós conhecemos bem o potencial disruptivo das redes, principalmente quando manejadas de forma criminosa (aqui, isso ajuda a entender, em parte, a tragédia do bolsonarismo).

Em vez de apoiarem as mutações em curso – todas em direção a maior abertura da sociedade –, os Estados Unidos, mesmo em plena pandemia, adotaram uma política de asfixia que só encontra paralelo em sociedades sob ocupação militar. Têm deixado claro – sob Trump e, até aqui, sob Biden – que não aceitam dar livre curso às mudanças, para que a sociedade cubana defina seu futuro por si mesma. Não é exagerado dizer que o corte do acesso às fontes de energia e de alimentos ecoa políticas nazistas.

A ideia de que o regime sobrevive apoiado na repressão é fantasiosa. Com múltiplas formas de democracia direta, o sistema político cubano, de partido único, é muito mais participativo e mais flexível que o brasileiro (com 38 partidos, por enquanto). Por isso, aliás, o país resiste. O Parlamento é considerado uma expressão direta da cidadania, e não de um ou mais partidos. Os candidatos, indicados por grupos de cidadãos, não precisam ter filiação partidária e disputam eleições distritais bastante competitivas. Ninguém precisa estar filiado a partido para se tornar deputado. O Partido Comunista não indica candidatos nas eleições.

Não existe a possibilidade de ficar tudo como está, como defendem muitos simpatizantes de Cuba, pois as mudanças estão em curso acelerado e são irreversíveis. E a ideia de uma ruptura, como defendem os opositores mais ferrenhos, flerta com a tragédia: o governo cubano conta com uma base social extensa e mobilizada, capaz de vencer qualquer desafio direto, inclusive uma intervenção militar estrangeira.

Deixada em paz, com uma inserção normal no mundo e com as influências legítimas que decorrerão dessa inserção, a sociedade cubana encontrará seu caminho, que eu não sei qual será. Há muitos canais internos de diálogo. Mas a alternativa americana tem sido produzir isolamento, demonização, pobreza, desespero e conflito. É um crime. O Estados Unidos podem destruir Cuba. Talvez possam inviabilizá-la. Mas não podem ocupá-la. Sua negativa em reconhecê-la como nação soberana prolonga o impasse.

Por Cesar Benjamin