Ciro Gomes e a chance de uma nova relação entre religião e política

Ciro Gomes e a chance de uma nova relação entre religião e política
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Roberto Dutra[1] – Ciro Gomes esteve em um culto evangélico com sua esposa a convite de um amigo e apoiador, o Cabo Daciolo. Católico, o pré-candidato a presidente pelo PDT sempre acreditou em Deus, embora muitos não saibam ou até digam o contrário, como nas fake news bolsonaristas. No culto, ele não usou o púlpito para fazer política. E o templo não era o de nenhum destes famosos figurões da mistura promíscua entre religião e política que dizem controlar o povo cristão. Ao contrário do que muitos disseram, Ciro não misturou religião e política ao se fazer presente neste culto em Fortaleza. Ele apenas exerceu seu direito de deixar pública sua fé. Se isso tem efeitos políticos, é basicamente o de dissipar as mentiras bolsonaristas de que ele persegue quem crê em Deus. A ação de Ciro é coerente com a busca de conciliação do direito ao exercício da fé e à liberdade religiosa com um estado laico no qual ateus e religiosos tenham os mesmos direitos. Em vídeo do ano passado[2], ele já havia explicitado esta proposta de conciliar religião pública influente na política com a diferenciação entre estas duas esferas. Revendo este vídeo e observando a conduta de Ciro, identificamos a proposta de uma nova forma de relacionamento entre religião e política que recusa a cooptação de figurões e mercadores da palavra, como fazem neste momento Lula e Bolsonaro em disputa pelo apoio de Edir Macedo e da Igreja Universal[3]. A proposta de Ciro valoriza e exalta um outro modo de envolvimento da fé e das igrejas na esfera pública e na vida nacional.

Como funciona este outro modo de relação entre religião e política? A proposta de Ciro parte do diagnóstico sociológico de que a presença da religião na esfera pública não é e nem precisa ser sempre negativa e destrutiva. Ao contrário, a constatação é de que a religião pode trazer contribuições imprescindíveis para a vida nacional[4]. Na nossa visão, a contribuição mais importante que a religião pode trazer atualmente para a política é sua capacidade de construir no presente a fé no futuro, a esperança, e de indicar a atitude de rebeldia transformadora na vida individual e coletiva como a mais coerente expressão prática desta fé no futuro. A disponibilidade da esperança no futuro é um recurso de valor insubstituível para a política. Não se trata de acreditar em um futuro inteiramente distante e inteiramente desconhecido, mas sim de criar um futuro próximo e em alguma medida visível já no presente. A saga social de amplos segmentos das classes populares, que buscam manter a fé no futuro (“não deixar a peteca cair”) organizando em torno da religião estratégias concretas de reconstrução da vida familiar, econômica e comunitária, é também a saga nacional: não se trata apenas de planejar o futuro da nação, mas de reconstruir e alimentar a própria crença de que a nação tem algum futuro. É preconceito iluminista não esclarecido supor que podemos dispensar a fé religiosa nesta grande batalha espiritual que o país precisa travar: não uma batalha contra algum inimigo inventado (“comunistas”, “chineses”, STF etc.) como faz Bolsonaro em sua “guerra cultural”, mas sim contra a desesperança, a dimensão propriamente espiritual da crise brasileira. Ideologias políticas e projetos nacionais dependem da crença compartilhada no futuro. A religião popular têm conseguido construir esta crença em diferentes esferas sociais, especialmente na vida familiar. Pode também contribuir para que isto seja feito na política.

Olhando com cuidado a ação de Ciro, vemos que não se trata de ignorar os riscos envolvidos na relação entre religião e política, mas sim de explorar as possibilidades desta relação. Pelos menos quatro possibilidades se colocam de início: o boicote recíproco entre religião e política, a colonização de uma pela outra, o fortalecimento recíproco e a indiferença. Nas últimas décadas, a colonização da religião pela política tem predominado no Brasil. No caso específico dos evangélicos, desde sua entrada efetiva na política pós Constituição de 1988, os presidentes buscaram se aproximar dos religiosos pela via da cooptação política a partir de acordos com figurões que dizem representar este segmento do público. Foi assim como Lula, Dilma e Temer. Com Bolsonaro é um pouco diferente: ao mesmo tempo em que radicaliza a manipulação da religião pela política feita por Lula, Dilma e Temer, encena com a “guerra cultural” o controle religioso da política e da república como um todo. Politicamente, essa estratégia tem a vantagem de criar uma sensação de inclusão autêntica dos religiosos na política nacional, produzindo um contraste com quem pedia o voto mas não gostava de dividir o poder com os religiosos. Por isso, Bolsonaro desempenha com certo sucesso o papel de primeiro presidente evangélico do país (Arenari, 2020)[5]. Mas este sucesso só pode durar se Bolsonaro conseguir destruir o sentido de esperança e fé no futuro cultivado pelos evangélicos e cristãos em geral: um governo definido pela destruição precisa destruir também o sentido de futuro, pois a esperança no futuro é sempre construtiva. Ou então criar um sentido destrutivo de futuro, como vemos em seus apelos apocalípticos destinados ao rápido descrédito. Precisa destruir a religião para continuar usando a religião e fingindo que ela têm importância em sua obra de destruição nacional.

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Ciro Gomes e Giselle Bezerra em culto evangélico a convite do Cabo Daciolo.

A obra de reconstrução nacional de que precisamos não requer substituir esta colonização destrutiva da religião pela política nem pela indiferença entre ambas, como querem os adeptos da laicidade francesa, nem por uma politização com outra cor ideológica, que trata a religião apenas como fonte de legitimação e energia para ideologias políticas seculares. Para enfrentar a dimensão espiritual da crise brasileira, precisamos construir uma relação de fortalecimento recíproco entre política e religião, combinando separação de esferas com influência construtiva entre elas. Não se trata de colocar a política no lugar da religião, nem a religião no lugar da política, mas sim de construir uma nova “religião civil” brasileira: uma nova cultura política inspirada não só em valores religiosos como superação e solidariedade, mas antes de tudo na fé no transcendente[1] como traço próprio do sentido religioso do mundo que ultrapassa fronteiras ideológicas e sociais.

Na prática, isso significa adotar um caminho bem distinto daquele seguido por Bolsonaro e seus antecessores. Em vez de mobilizar politicamente a religião em torno de “guerras culturais” contra inimigos inventados, criando uma cultura política de destruição e fragmentação nacional (Bolsonaro), ou cooptar os conhecidos figurões com poder e audiência (antecessores), buscar aproximação com as obras sociais das igrejas que reconstroem famílias e vidas em nossas periferias urbanas. Em vez de buscar conchavos com esses figurões que dizem decidir pelo povo, se aproximar de lideranças novas, de sacerdotes que buscam o poder não como um fim em si mesmo, mas como meio indispensável para mudar e melhorar a realidade. Em vez de andar com quem promete trazer apenas o voto dos fiéis, unir forças com aquelas organizações e lideranças interessadas em amplificar, através da cooperação com o Estado, o trabalho social que já realizam. Práticas e organizações religiosas que buscam reconstruir famílias e vidas ameaçadas pela pobreza e pela violência também reconstroem e alimentam diariamente o sentido de fé no futuro em uma vida melhor para quem é assediado o tempo todo pela desesperança.

Esta dimensão espiritual da crise brasileira – o desespero, a falta de fé no futuro – não será superada sem que a política consiga estabelecer relação construtiva com o único sistema social que tem conseguido fazer a grande maioria do povo acreditar no futuro e na vida: a religião. Mas para isso, a política não deve buscar a cooptação dos religiosos e a manipulação da fé, mas sim a cooperação em torno do trabalho social com religiosos que desejam influenciar as políticas públicas, mas não fundir organização religiosa com o poder político. É este tipo de relação que permite existir religião pública e ao mesmo tempo separação entre religião e política. Não basta exigir a separação entre religião e política. É preciso entender que esta separação só ocorre dentro de relações específicas entre estas duas esferas da sociedade e da vida. Ao buscar a aproximação com evangélicos, Ciro não está reproduzindo velhas fórmulas de articular religião e política, mas sim tentando inaugurar um novo modelo de combinar influência pública da religião com estado laico.

[1]Por Roberto Dutra: Doutor em sociologia pela Universidade Humboldt de Berlim e professor de sociologia e administração pública da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Foi diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada/IPEA.

[2]https://www.youtube.com/watch?v=4Q6vLaLd32k

[3]https://www.uol.com.br/eleicoes/2022/02/11/entre-lula-e-bolsonaro-igreja-universal-decide-apoio-em-agosto.htm

[4]https://disparada.com.br/religioes-dimensao-espiritual-crise-brasileira/

[5]ARENARI, Brand. “Bolsonaro, o primeiro presidente “evangélico” do Brasil”. In: TEXEIRA, Carlos Sávio & MONTEIRO, Geraldo Tadeu (orgs.) Bolsonarismo: teoria e prática.1 ed. Rio de Janeiro: Gramma, p. 19-38.

  1. Aparentemente o autor tem uma visão limitada e unidirecional em relação ao fenômeno religioso (principalmente neopentecostal) que ocorre no Brasil desde a redemocratização.

    O pensamento unidirecional do autor nesse texto se guia para ter como base que “a política busca colonizar a religião” e assim esquece de se atentar para o fenômeno contrário (e até aparentemente mais explícito) em que também há o fenômeno de “igrejas que buscam colonizar a política”.

    Não está no raio de observações do autor (mas deveria)… esse fenômeno que resultou em “Bancada da Bíblia” no CN e na tão difundida “Teologia da Prosperidade”. Será que o autor se preocupou em observar quem compõe essa “Bancada da Bíblia” e como são as votações dessa bancada no CN???

    Nessa aparente omissão é que pode estar uma peculiaridade do fenômeno brasileiro: a simbiose do neoliberalismo com as igrejas neopetencostais que por sua vez buscam formar bancadas de parlamentares cada vez com maior peso para pressionar por políticas neoliberais em economia e social (além de conservadores nos costumes), pesquise sobre as votações dessa bancada parlamentar específica para entender suas estratégias. Aliás, parece ser uma lógica bem possível para certas igrejas que tenham a estratégia de lucrar com o Estado Mínimo. Ou seja, quanto menor o Estado… maior a possibilidade de penetração dessas igrejas que se pautam por uma doutrina do lucro. E, este é o “novo modelo” que teve muita ampliação no Brasil e que o autor aparentemente não dá nenhum destaque.

    O autor que estudou em Berlim deveria tentar expor uma visão mais comparativa entre como a sociedade alemã e Estado atual lidam com a religião (e olha que a Alemanha tem um histórico religioso interessantíssimo como palco de Sacros Impérios como nas Reformas Protestante), em relação ao que vem ocorrendo no Brasil com mais força… Assim o texto ficaria mais completo e menos unilateral – inclusive tendo uma visão mais acurada sobre as possibilidades de cooperação e os riscos (principalmente em relação a algumas igrejas que paradoxalmente se utilizam de benesses estatais de isenção, mas que se objetivam por um Estado Mínimo para potencializar lucros).

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