Carlos Lacerda e o episódio da Rua Tonelero: muitas perguntas sem respostas

Carlos Lacerda e o episodio da Rua Tonelero muitas perguntas sem resposta
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Por André Luiz Dos Reis e Daniel Magalhães – Sessenta e oito anos se passaram desde o episódio histórico conhecido como “atentado da Rua Tonelero”. Envolto em mistérios e tramoias políticas, parte do relato propagado pela mídia Udenista, à época liderada pela voz contundente de Carlos Lacerda, permanece até hoje foco de constante polêmica entre historiadores e memorialistas. Afinal, o que de fato ocorreu naquela noite?

O ano era 1954. O governo do Presidente Getúlio Vargas se encaminhava para o fim. Embora popular, o fundador do Estado Novo enfrentava acusações diárias de corrupção, incompetência e autoritarismo, quase todas vindas da mesma fonte, a União Democrática Nacional (UDN).

Segundo maior partido político do país, atrás apenas do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de Vargas, a UDN reunia velhos e novos opositores ao que chamavam de “populismo getulista”. De discurso moralista e defensores do liberalismo clássico, os “Udenistas” tinham no Jornal Tribuna da Imprensa seu principal veículo para chegar à sua base de apoio formada sobretudo pela Igreja Católica e as altas patentes militares do Rio de Janeiro.

O Tribuna da Imprensa pertencia a Carlos Lacerda, jornalista carioca cuja ferocidade galvanizava um movimento cada vez forte e reacionário. Já desde 1950, ante os clamores queremistas pelo retorno do Presidente, Lacerda defendia abertamente um novo golpe contra Getúlio, proferindo as seguintes palavras: “[Vargas] não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.

Sua frustração com o retorno do caudilho ao poder reverteu-se numa tentativa fracassada de impugnação eleitoral e numa intensa campanha pessoal contra o presidente, por vezes atacando membros de sua família. Acusações de desvio de verbas públicas, de má administração e até mesmo de senilidade davam o tom dos seus artigos, que frequentemente conclamavam forças militares e eclesiásticas a se insurgirem contra o governo.

Em agosto de 1953, precisamente um ano antes do atentado, Carlos Lacerda fundou no Rio de Janeiro o Clube da Lanterna, organização civil que tinha por objetivo combater o “dirigismo” de Vargas. Logo em seguida, forma-se a Aliança Popular Contra o Roubo e o Golpe, coligação partidária com o mesmo objetivo. Na Tribuna da Imprensa as manchetes tornavam-se cada vez mais cáusticas, chamando Getúlio de “patriarca do roubo” e “gerente-geral da corrupção do Brasil”.

Enquanto Lacerda avançava, o presidente Vargas, conhecido por não gastar palavra, mantinha-se plácido no Catete. Mas sabia que a situação era grave. Desde 1952, quando emitira o decreto 30.363, que dispunha sobre a remessa de lucros ao estrangeiro, poderosos interesses internacionais haviam se unido contra seu governo. A ira desta elite econômica seria ainda mais atiçada no ano seguinte, com o início da campanha “O petróleo é nosso” e a fundação da Petrobras. Getúlio sabia que a UDN ou Lacerda não eram seus maiores adversários, mas a face pública de um poder subterrâneo que só o Estado Novo fora capaz de conter.

Mas não havia mais Estado Novo. Com a Constituição de 1946, instaurara-se no Brasil uma democracia de caráter liberal à qual Getúlio criticava, comparando-a a uma “velha árvore coberta de musgos e de folhas secas à qual, um dia, o povo sacudiria com o vendaval da sua cólera”. Vargas era um caudilho de origem rural, um estancieiro acostumado à política de rédeas curtas, porém sabia que a mundialização da economia era inevitável e que as rédeas frouxas do novo regime logo sucumbiriam frente à pressão crescente do capital transnacional.

Movido por este prenúncio, Vargas governava com pressa para nacionalizar o que tivéssemos de mais precioso e solidificar as bases industriais que havia erguido na Grande Guerra. Sua força política se constituía naquilo que os Udenistas chamavam de populismo, ou seja, do apoio mobilizado do povo trabalhador e de uma sólida base parlamentar que garantia a governabilidade. Mas na medida em que a campanha pela criação da Eletrobras avançava, prometendo estatizar toda a matriz energética, os ataques da grande mídia tornavam-se mais graves e o achacamento econômico mais frequente.

Em 1953, devido à Guerra nas Coréias e o fim dos empréstimos dos Estados Unidos aos países da América do Sul, a inflação galopava em torno 20% e a insatisfação ameaçava minar a popularidade de Getúlio entre os mais pobres. Por um lado, a Marcha das Panelas Vazias e a Greve dos 300 mil, ambas em março daquele ano, simbolizavam a saída de parte do operariado organizado da base governista. Por outro, Udenistas diziam que Vargas queria fazer do Brasil uma “república sindicalista”, tal como a Argentina de Perón.

Em resposta ao desagrado popular, Getúlio nomearia o proeminente deputado gaúcho João Goulart para o Ministério do Trabalho. Contudo, a proximidade familiar de Getúlio com Jango, seu afilhado, inflamaria ainda mais os Udenistas com acusações de nepotismo. Em fevereiro de 1954, um “Manifesto dos Coronéis” publicado pelos militares (entre os quais se encontrava Golbery do Couto e Silva) exigiria, em nome da moralidade, a demissão do ministro. Seriam atendidos, mas não antes de Jango aprovar um repentino aumento do salário-mínimo em 100%, o maior da história.

Para Getúlio, aquele Manifesto marcaria a crescente perda de apoio entre os militares, enquanto a demissão do Ministro lhe renderia críticas entre os movimentos e organizações do trabalho. Além disso, juntavam-se ao coro de protestos vários jornais de maior porte, como O Estado de São Paulo e O Globo, que juntamente com o Tribuna da imprensa trariam denúncias de empréstimos ilegais concedidos pelo governo ao jornal situacionista Última Hora. O caso levaria à rápida abertura de uma CPI, fato amplamente explorado como símbolo da corrupção governista.

A essa altura, o anúncio de um golpe contra Getúlio parecia ser questão de tempo. As peças estavam postas e o Catete mais uma vez se via cercado. O que faltava era uma gota d’água, e ela veio.

Na noite do dia 4 de agosto, um sábado, Carlos Lacerda participava de um comício no tradicional Colégio São José, no bairro da Tijuca. O discurso violento contra Vargas e seus aliados levantava aplausos efusivos dos presentes. A cada denúncia, por mais infundada, os gritos exigindo a deposição do presidente se avolumavam, ao que os militares que cercavam Lacerda aquiesciam discretamente. Era quase meia noite quando o jornalista parou de falar e retirou-se do púlpito sob os cumprimentos das carolas e dos generais. Acompanhavam-lhe o filho Sérgio e seu guarda-costas, o Major da Aeronáutica Rubens Florentino Vaz, que naquela noite era também seu motorista.

Nos primeiros minutos do dia 5 os três deixaram o imponente colégio marista e tomaram a estrada rumo ao bairro de Copacabana, mais precisamente à Rua Tonelero, onde Lacerda morava. Tão logo desceram do carro perceberam a presença de duas figuras desconhecidas na penumbra. O Major Rubens Vaz exigiu que se identificassem, mas o que viu foi o reflexo de um revólver sendo erguido. Imediatamente partiu para cima e entrou em intensa luta corporal com o homem, sendo logo alvejado e caindo inerte na pista.

À porta de casa com seu filho, Carlos Lacerda viu a outra figura se aproximando com o revólver em riste e sacou a própria arma, iniciando um tiroteio. De costas, empurrou seu menino porta adentro e mergulhou logo atrás atirando, mas não antes de ser atingido no pé por um projétil de calibre .45, de uso exclusivo das Forças Armadas. No entrevero também foi ferido um guarda municipal, que tentou interceptar a fuga de um dos agressores, e um taxista que teve seu carro roubado.

Pouco depois dos tiros um carro da polícia chegou ao local. As figuras haviam fugido, Rubens Vaz estava morto e Lacerda seria rapidamente encaminhado para o Hospital Miguel Couto, onde teria a perna inteira engessada. Ainda na madrugada deste dia 5, diante de vários jornalistas, políticos e do Brigadeiro Eduardo Gomes, presidente da UDN e amigo de Rubens Vaz, Lacerda afirmaria que o crime tratava-se de um “atentado patrocinado por elementos da alta esfera governamental”, palavras que seriam imediatamente repercutidas nos jornais.

O dia foi conturbado nas casernas. No fim da tarde, o presidente do Clube de Aeronáutica, Brigadeiro Inácio de Loiola, convocou para a manhã seguinte uma reunião que contaria com a presença de mais de seiscentos oficiais das três Forças. Deste encontro resulta uma carta exigindo a completa apuração do atentado, o que tem efeito imediato com o depoimento do taxista Nélson Raimundo de Sousa, cujo carro fora levado por um dos autores do crime. Sem tituberar, Nélson acusava diretamente Climério Euribes de Almeida, membro da guarda pessoal de Getúlio Vargas, fato que a Tribuna da Imprensa alardeia acusando Vargas de ser o mentor do atentado.

Enquanto isso, o ferido Carlos Lacerda encontra-se secretamente com o vice-presidente Café Filho, propondo-lhe que assuma a presidência com ajuda dos militares. Editoriais são publicados clamando às Forças Armadas que deponham Getúlio Vargas. As primeiras prisões são realizadas e, no dia 12, o Brigadeiro Nero Moura autoriza a instauração de um inquérito Policial Militar (IPM) na base aérea do Galeão, dando aos oficiais total autonomia no interrogatório dos envolvidos. O primeiro a ser interrogado é Alcino João do Nascimento, mestre de obras reconhecido por Lacerda como um dos pistoleiros. Alcino rapidamente confessa a autoria do crime e implica tanto Climério Euribes de Almeida quanto Lutero Vargas, filho do presidente, no plano de matar Lacerda.

Após alguns dias supostamente foragido, Climério é preso no dia 18 e confessa ter sido contratado por Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio e seu homem de confiança, conhecido como “Anjo Negro”. Fortunato é levado preso do Catete direto para o Galeão, tendo sua casa e seus bens devassados nos jornais, que lhe acusam também de enriquecimento ilícito. Neste dia a mídia publica um novo manifesto, dessa vez de autoria do Clube da Lanterna, conclamando às Forças Amadas a uma atitude: “Deponham o Presidente!”.

São horas decisivas para o país, mas os dias se passam e Getúlio mantém-se em silêncio. Um clima lúgubre e melancólico paira no Catete, enquanto as ruas se agitam em expectativa e tensão. Não lhe surgem apoios, a confissão da autoria do atentado afasta qualquer chance de reação. A narrativa estabelecida pelos Udenistas com ajuda da grande mídia aponta todas as setas para o presidente, ainda que vários detalhes importantes do episódio passem ao largo, anuviando as investigações.

Não se comentaria, por exemplo, que os interrogatórios realizados nos porões da base aérea eram na verdade longas sessões de tortura. Nem que a aparentemente rápida confissão de Alcino só viera depois de muito lhe alquebrarem (antes, o mestre e obras dizia que tinha sido contratado como espião, nada mais que isso). Segundo o historiador André Luiz Dos Reis, durante o interrogatório de Gregório Fortunato não apenas lhe torturavam brutalmente, como também ameaçavam atirá-lo de um avião em pleno voo. Fortunato seria condenado a 25 anos, mas morreria na cadeia em 1962 sob circunstâncias nunca esclarecidas.

Outro mistério inaudito diz respeito ao assassinato do Major Rubens Vaz, que embora tivesse entrado em luta corporal com Alcino, teve como causa mortis um implausível tiro nas costas. Não foi a versão que prosperou na mídia, que corroborava tudo o que Lacerda dizia, mas havia também uma importante divergência entre o calibre .45 que atingiu o Major e Lacerda e o calibre dos revólveres apreendidos com os criminosos, ambos .38. A arma de Lacerda, por sua vez, jamais foi periciada, dado que este se recusou a entregá-la ao delegado de Copacabana e não houve protesto.

Ainda segundo Dos Reis, nem sequer o ferimento no pé de Lacerda fora devidamente confirmado. Em seu livro de memórias, o ex-ministro Armando Falcão, que à época era deputado federal, conta que visitou Lacerda no Hospital Miguel Couto logo após o atentado. Encontrou-lhe com o pé já enfaixado e esteve consigo até a hora de ir embora, quando ambos tomaram um táxi rumo à Tonelero. No caminho, diz Falcão, Lacerda sofreu um colapso nervoso e começou a chorar, dizendo que a morte de Vaz era terrível, e que achava que havia sido ele, Lacerda, quem teria matado o próprio amigo.

A memória tardia de Armando Falcão, publicada apenas em 1989, talvez ajude a entender a razão pela qual testemunhas que ajudaram Lacerda a socorrer Rubens Vaz não perceberam qualquer ferimento no pé do jornalista, nenhum sangue, nenhuma expressão de dor. Lacerda pediu socorro, parou um táxi na rua, ajudou a transportar o corpo do major, foi com ele até o Miguel Couto sem mancar e sem que ninguém notasse problema em sua perna posteriormente engessada. Já o prontuário do caso sumiu do hospital e até hoje não foi recuperado.

De fato, nunca houve reconstituição do suposto atentado. As investigações foram conduzidas pela República do Galeão sem que houvesse qualquer supervisão e com os piores métodos possíveis. O próprio Lacerda caiu em contradição mais de uma vez. No início, ele declarou que havia presenciado tiros vindos de todos os lados, e que existiam no mínimo três pistoleiros no local. Depois passou a dizer que os tiros partiram somente de Alcino, ao que ele, Lacerda, teria apenas revidado a agressão, aderindo à versão dos investigadores militares.

Entre mistérios e tramoias políticas, o fato é que os udenistas tinham a mídia, a igreja e os militares. E tinham Carlos Frederico Lacerda, um líder combativo e extremamente eloquente cujo desapreço por Vargas ia além de qualquer moral. Para Lacerda, destituir Vargas não era tanto uma vontade quanto uma missão de vida. Quando comunista, fora perseguido pelo Estado Novo. Agora liberal, não prosperava com sua agenda. Pela esquerda ou pela direita, seu inegável talento era sempre eclipsado pela figura bucólica de um presidente que pouco falava e muito fazia. Getúlio Vargas, ao contrário do talentoso jornalista, não se pautava somente pelo tempo apressado da vida. Seu lugar sempre fora – e continua sendo – o tempo plácido da História.

PÃO, TERRA, TRADIÇÃO!

Por André Luiz Dos Reis e Daniel Magalhães

Publicado pela Frente Sol da Pátria

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