O Brasil “é nóis!” aqui e agora como problema e solução

O Brasil “é nóis!” aqui e agora como problema e solução-min
Botão Siga o Disparada no Google News

Se conseguirmos dar a volta por cima para vivermos de fato como estado-nação, um dos problemas que o Centro de Estudos do Nacionalismo Horta Barbosa terá que enfrentar, em termos teóricos e práticos, é a perspectiva de revisão e reversão do descalabro das privatizações no Brasil.

O Centro de Estudos do Nacionalismo é uma das últimas novidades da academia brasileira, sendo vinculado ao Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Posição pessoal aqui minha e não oficial do referido centro de estudos, sempre na esperança da diversidade de opiniões numa reunião de pesquisadores. Porém, tendo a ver, certamente, com perspectivas interdisciplinares vinculadas à defesa nacional e aos temas correlatos a que vêm se propondo estudiosos de formações distintas recém-chegados a este fórum de estudos.

A título de gancho para o tema, um livrinho fininho e oportuno cai como uma luva para a presente reflexão. Pequeno no formato e com 114 páginas, trata-se de uma grande obra para os estudos e pesquisas do Centro de Estudos do Nacionalismo Horta Barbosa e outros atores e agentes da sociedade empenhados em temas voltados para a defesa nacional.

Trata-se do livro “Nacionalização: necessidade e possibilidades” (São Paulo: Contracorrente, 2021), dos professores Gilberto Bercovici e José Augusto Fontoura Costa. Os autores tratam da soberania econômica, o desmonte do estado brasileiro, o direito internacional e a retomada do desenvolvimento e a nacionalização.

Bem-vindo o trabalho que, como outros observadores já apontaram, não se trata, conforme a leitura que faço, da ingênua contraposição entre estado e mercado, ou de ódio à iniciativa privada ou ainda de xenofobia. Mas, sim de desmitificar o mantra de que a privatização de tudo é necessária e inevitável para se obter melhores serviços públicos etc. e outras baboseiras mais.

Pegando carona no texto dos autores, assinale-se que o que se iniciou na década de 1990 foi, sim, um descalabro, um tipo de macrocorrupção acoplada a uma corrupção maior, que é o fetiche do mercado invisível, o mercado que escraviza a maior parte da sociedade com seus ditames e cordéis do sistema de políticos fantoches.

A adjetivação derramada não empobrece a crítica substantiva, pois convenhamos no que concerne à percepção da corrupção como medula inerente ao sistema capitalista. Isso, embora os puristas clássicos, neoclássicos e tecnocratas, sejam economistas ou juritsas, fiquem arrepiados e não admitam essa imanência da ‘sociedade de mercado’, para usar uma expressão cara a Karl Polanyi.

O seguinte: depois do receituário neoliberal do Consenso de Washington goela abaixo nos países da América Latina e da crise asiática do fim década de 1990, com as privatizações e liberalização do mercado de capitais, só para citar dois itens daquele receituário, o Brasil foi despencando ladeira abaixo e não parou mais de cair, favorecendo, porém, determinadas elites que compõem parcela minúscula da população.

Isso, mesmo depois, à época dos governos petistas, apesar das políticas voltadas para o aumento do consumo das famílias e das ações de renda mínima etc. Não à toa a desindustrialização do país, em relação à qual os governos do PT também são responsáveis, além dos governos de FHC – e agora os desgovernos Temer / Bolsonaro que dispensam comentários.

Não adianta discurso com varrição para debaixo do tapete, pois trata-se do projeto neoliberal vigorando, de 1994 a 2015, com parte das elites políticas e partidárias trocadas, e agora a devastação ultraliberal de consumação do desmonte.

Mesmo após o período de redemocratização a partir década de 1990, setores da própria esquerda assumiram e aceitaram cinicamente as privatizações como medidas supostamente ‘modernizadoras’ ou de interesses inconfessáveis com olhos voltados para conluios e apoios de setores do mercado.

Bem sabemos, porém, que o descalabro não é atributo exclusivo do Brasil. Até na China o baile é uma tentativa de compatibilizar uma nuvem espessa que encobre interesses privados frente a supostos ‘públicos’ em jogo – seja lá que direção tome qualquer polêmica sobre o que deve ser público ou privado, quem deve controlar o quê, quem deve ditar as regras. Quem deve, enfim, garantir o cumprimento de regras, porém, mais ainda, quem deve fazê-las e para quem.

Se na China vive-se capitalismo puro com outras ‘caras’, socialismo futurista, ‘socialismo de mercado’ ou o que o Partido Comunista Chinês diz que é – não sei –, mas o fato é que o baile aqui, no Brasil, é bem diferente com suas alcateias ferozes e vorazes manipulando sonâmbulos, seja na dança de marionetes do jogo político, seja entre os cidadãos comuns em seu sono concreto, de tumultuados pesadelos e da ilusória participação supostamente ativa nas redes sociais, algemados aos seus celulares.

Faça-se, por exemplo, uma pesquisa pegando um nicho, apenas, por exemplo, a população de jornalistas, e talvez se constate que a grande maioria ou é neoliberal, sem se assumir assim, ou sem saber que se é, mas se achando ‘moderna’ e antenada. Ou acredita que o problema maior do país é a corrupção, o que dá no mesmo, ignorando o fenômeno conhecido como “guerras híbridas”, muitos concebendo o nacionalismo como tema anacrônico.

O problema é concreto, repita-se, qual seja, o desmonte do país, mas também teórico, vale dizer, o de formular novos problemas. Sim porque, de um lado, infraestrutura é sinônimo de estado e não simplesmente de um “setor” da economia. E, de outro, novos problemas teóricos precisam ser colocados na mesa, tratando-se, portanto, de questão de estudos e pesquisas, não se reduzindo a partidarismos e/ou a escolhas eleitorais momentâneas.

Claro que tresloucados leem esse texto como sendo de autoria de comunista ou, tanto quanto mais ignorante, texto de petista, sinônimo absurdo de comunista. Outros sonâmbulos o leem fazendo o silogismo pueril, segundo o qual se está defendendo o estado é porque também é comunista. Ou então os mais um pouco esclarecidos, ainda que não imbecis, lendo com a interpretação de que o autor aqui defende um suposto ‘capitalismo de estado”, ignorando que todo capitalismo é de estado.

A questão é que tipo de estado queremos, que tipo de país desejamos agora e no futuro. O Brasil como problema e solução, isso fica esquecido. Problema da necessidade de sairmos do fundo do poço. Solução porque só aqui – “é nóis”, como diria Emicida – encontraremos solução. E isso torna-se mais pertinente diante do noticiário sobre o imperialismo estadunidense nos conflitos da Ucrânia.

Imaginar-se como estado-nação dentro de complexos maiores faz parte das preocupações com a defesa nacional. Indagar, por exemplo, o que temos a ver com os problemas da Ucrânia. Lembro que foi durante grandes crises internacionais que o Brasil encontrou soluções para o seu desenvolvimento, ainda que no arremedo, para pelo menos não cair no poço escuro e fundo, como estamos agora.

Não vou também colocar no plano do fetiche exemplos históricos passados de possíveis soluções porque, afinal, as crises do capitalismo são diferentes – e cada vez mais vão se agudizando. Temos um problema em aberto com o sistema capitalista em termos de futuro. Não sabemos o que vai dar essa encrenca toda – e qualquer previsão tecnocrática é suspeita.

Entretanto, penso que devemos pensar o “aqui” como espaço de infraestrutura e superestrutura, o “agora” como a possibilidade de compreensão do nosso tempo, o nosso tempo como estado-nação. Aqui e agora como metáfora de invenção, criatividade e defesa de um projeto nacional. Infraestrutura para as coisas funcionarem, superestrutura com conhecimento, ideias e criatividade.

Se não podemos fugir ainda da valorização do valor tanto na infraestrutura como na superestrutura, que pelo menos nesta última possamos construir terrenos para novos “valores” (fora da valorização do valor), novas formas para o que se imagina ser uma comunidade política, ainda que numa situação contraditória, ainda que tudo seja dentro do capitalismo, pelo menos por enquanto. Com certeza, porém, não será o mercado quem vai vir com um projeto de defesa nacional para atender aos interesses do país.

Bercovici e Fontoura Costa lembram que foi instituído no Brasil um fenômeno da blindagem da constituição financeira para preponderar as regras do ajuste fiscal, da política monetária ortodoxa, privilegiando os interesses econômicos privados em detrimento das políticas distributivas e desenvolvimentistas. Eu acrescentaria também as políticas redistributivas. Trata-se, segundo eles, de um “estado de exceção econômico permanente”.

Observam o seguinte, na linha também de outros autores: “O processo de privatização tem por finalidade reduzir a atuação do Estado, passando para o setor privado atividades ou áreas de atuação até então objeto de controle e atuação públicos. (…). O Estado vem sendo reconfigurado por linhas pró-mercado. Muitos igualam o governo privatizado com diminuição de custos e maior eficiência. (…). Um governo pró-mercado seria apolítico, com a utilização de instrumentos tecnocráticos para uma atuação mais racional. (…). Com a privatização, não há uma retirada ou diminuição do papel do Estado, mas uma reestruturação do Estado no sentido de garantir primordialmente determinados interesses econômicos privados.”

O Brasil como problema e solução é uma paródia, seguindo o raciocínio também de Peter Evans em seu famoso artigo publicado no fim da década de 1990, cujo título é bem sugestivo para a nossa reflexão: “O Estado como problema e solução”. E isso só pode ser conosco mesmo, com ninguém mais. “É nóis”, como diria Emicida. E as aspas são para reforçar a correção do objetivo e sentido do pronome, bem como para deixar claro que esses assuntos não podem ser sequestrados pelas elites que compõem parcelas mínimas da sociedade.

Deixe uma resposta