A política anti-institucional do governo: como Bolsonaro sabota as instituições

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Por Tiago Medeiros – Bolsonaro costuma lidar com as instituições através de quatro expedientes. Todos eles foram, de alguma maneira, experimentados em outros momentos históricos por atores políticos os mais ideologicamente distintos para contornar problemas como impasses entre poderes, conflitos entre as temporalidades governamentais, atenuação de crises etc. Porém, pela primeira vez, um governante e seus satélites de apoio lançam mão de todos os recursos ao mesmo tempo, provocando um raro período histórico de agudo estresse institucional.

Comecemos por pôr títulos nos respectivos capítulos. O primeiro expediente é a personalização radical das instituições, a saber, conferir nome e CPF a órgãos públicos pela politização do trato com agentes desses órgãos. O segundo é a interferência nas instituições de segurança e de Força, de modo a afrouxar os laços que garantem a armação de suas cadeias de comando. O terceiro é a cooptação de agentes de instituições de Estado, substituindo os critérios de escolha das comunidades institucionais pela promoção como moeda de troca. Por último, o desprezo a protocolos e ritos institucionais, entre os quais os sacramentados na Constituição, que, no limite, representa um acinte à própria Carta de 1988. Consideremos um a um.

Uma das marcas de Bolsonaro é a de propalar o seu jeito de fazer política: politizar até o impolitizável. É evidente que, no sentido amplo, a política é a atividade humana que atravessa todos os poros da vida social definindo os valores em nome dos quais o pacto social estabelecerá o imaginário e as instituições da comunidade. Mas a politização praticada por Bolsonaro é a da política miúda, da barganha, dos interesses e conflitos os menos estruturantes e, mais do que impuros, quase sempre obscenos. Seria desonesto sugerir que Bolsonaro inventou esse modo de operar em política. Convém, todavia, sinalizar que ele transformou essa hiperpolitização em um dispositivo eficaz de personalização das interações entre mandatários e instituições.

Recentemente, ele fustigou os jornalistas com a expressão “meu exército”. Essa posse fictícia é na prática a verbalização de um fenômeno real que se revela quando ele se dirige ao procurador geral da República como “o Aras”, ou, pior, quando ele se dirige ao ministro do STF como “o Kássio”, sempre em contextos sobre pautas sensíveis de seu interesse. Essa intimidade com que ele transita entre instituições e atores institucionais converte toda a formalidade que a coisa pública requer em uma relação interpessoal para a qual vontades e interesses são transparentes para quem quiser os ver. O Aras e o Kássio são dele; o Celso de Melo, não. A vacina do Dória não serve; a CPI do Renan, tampouco. E isso não precisa ficar na alcateia dos agentes dos poderes. Já o ouvimos dizer qualquer coisa como o Augusto Nunes é quem fala a verdade e faz jornalismo.

Essa personalização de tudo é uma sinalização, para seus seguidores, de quem na vida pública nacional faz ou tem vontade de fazer o que o presidente espera. Com esse expediente o que se quer e o que não se quer se sobrepõem ao que se pode ou não e ao que se deve ou não fazer. Em outras palavras, as idiossincrasias pessoais obnubilam os dispositivos institucionais.

O segundo expediente destacável pode ser analisado à luz da controvérsia recente sobre a interferência de Bolsonaro nas instituições de segurança e nas Forças Armadas. Pazuello sobe no palanque, desacata uma lei e simplesmente é tolerado em seu desacato. As especulações sobre a participação direta ou não de Bolsonaro nesse episódio são muitas, e certa é a suposição de que esse descumprimento por parte de um alto oficial fermente novos descumprimentos na base.

Tudo começa com a composição de um personagem ambíguo nesse quesito. Tendo vinte e oito anos de carreira parlamentar, Bolsonaro se projetou como um outsider proveniente das Forças Armadas, instituição em que atuou por apenas onze anos e da qual saiu expulso. Um ex-capitão que é capitão da reserva, que é capitão sem mais. Sua encenação no teatro político e seu carisma o estenderam à simpatia dos profissionais das forças de segurança como um todo. E, desde então, a influência de Bolsonaro entre os homens armados é grande; mesmo porque ele sabe jogar com ela.

As Forças Armadas, com ênfase no exército, têm passado por um processo de cooptação curioso com promessas para as condições de carreira e cargos comissionados para milhares de militares. Com sua influência ideológica, Bolsonaro apadrinha policiais desejosos de adquirir cargos Brasil adentro serve como recrutamento de mais militares à política e de maior lealdade desses beneficiários ao capitão. É notável que ele participe de diversas cerimônias de formação de oficiais de baixa patente; e é igualmente latejante a identificação estética que soldados, cabos e sargentos, quer das polícias, quer do exército, têm consigo.

Essa influência é o suporte do expediente de interferência nessas instituições. Bolsonaro coopta com cargos e com apadrinhamento todos os que pode no médio e alto oficialato das profissões armadas. Para os fardados de baixa patente, Bolsonaro oferece um discurso de guerra contra espantalhos da sociedade civil e uma autoimagem de super-herói com que aqueles sublimam as tormentas de sua profissão. Aproveita das dificuldades e dores de quem é policial e vive na linha de frente contra bandidos ferozmente equipados para trazê-lo ao seu lado, monopolizando a identificação estética dos policiais entre os representantes políticos. Mas esse expediente é justamente o que permite a ele estar sob o comando total e ter um consenso de sua liderança entre os comandados. As vinte e sete unidades da federação sofrem com o descontrole da polícia, como foi visto no Ceará – episódio não difundido pelo país, provavelmente, por conta da pandemia. Ademais, apesar de a imprensa lembrar diariamente que o exército está dividido com relação a Bolsonaro, na prática, o lado dissidente não impõe a sua voz.

Nas instituições de Estado, há outro truque manuseado pelo presidente. A interferência nas eleições para reitores de Universidades e Institutos Federais, selecionando o mais alinhado ideologicamente foi uma tentativa de cooptação para preparar o terreno nessas instituições para o giro que ele desejava dar, tanto de cortes de verba, quanto de conteúdos de ensino. É o expediente com que ele manobra, não um ataque à autonomia das instituições, mas uma relativização dessa autonomia, doravante atravessada por sua presença na forma de um indicado direto. O processo pelo qual nomeou um intragável Augusto Aras para a liderança dos Ministérios Públicos é uma variante do mesmo instrumento – nomeação que agora tem se mostrado extremamente funcional, vez que, diante das denúncias que se avolumam contra a administração de Bolsonaro, o procurador geral parece indisposto até para dar recebimento dos processos.

Mas a interferência cooptadora nas instituições civis desdobra-se também nos órgãos públicos especializados em investigações. Todos lembramos do caso Ramagem e do conflito com Sérgio Moro. E não é menos que semanalmente que alguma notícia sobre a paralisia das investigações conduzidas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro a familiares, ex-vizinhos e amigos do presidente é publicada.

Vale refletir sobre mais um expediente, caminhando para o fim do texto. Esse é particularmente amargo, pois que ficou explícito durante a pandemia. Bolsonaro costuma quebrar protocolos quase compulsivamente. E não o faz no sentido meramente populista – o que já seria de mau gosto. Ele simplesmente não segue quaisquer regras com as quais não concorde, e trabalha para desfazer o mérito dessas regras, mesmo aquelas sob cuja regência obtivemos resultados numericamente positivos em seus respectivos domínios de mediação, como as de trânsito. Bolsonaro não respeitou as regras de distanciamento social e do uso de máscara recomendadas por autoridades científicas nacionais e internacionais e defendidas por seus próprios ministros da saúde. Ele é hostil aos protocolos que a sua própria equipe ratifica.

Essa atitude de rompimento e desprezo a leis evidentemente carece de apoiadores dispostos a aplaudir e a replicar as mesmas condutas. Por isso, é com um Ricardo Salles, um Abraham Weintraub, um Ernesto Araújo, um General Heleno que Bolsonaro se sente bem. São esses alguns dos que, em suas respectivas pastas, protagonizaram cenas de total acinte a pessoas e instituições.

A soma desses expedientes a rigor revela uma disposição renovada de Bolsonaro de antagonizar a institucionalidade emoldurada no texto constitucional de 1988. O problema de Bolsonaro é com a Constituição, com as obrigações que ela lhe impõe, com os limites com os quais ela lhe cerca, com os horizontes sociais com que ela se compromete e que não são os dele. Sob a empolgação de um desses atos inconstitucionais na frente do Palácio do Planalto, entre centenas de pessoas em plena pandemia, Bolsonaro deixou escapar o seu desprezo: “a Constituição sou eu”.

É sendo anticonstitucional que Bolsonaro materializa a sua luta de sempre contra o “sistema”. Após dois anos e meio de mandato, tem ficado claro que “sistema”, para ele, é o elenco de pessoas que ocupam cargos institucionais de cujos exercícios são implicadas limitações à sua liberdade de decidir e executar, por seguirem elas a Constituição. Como é impossível trocar todas as pessoas sem uma ditadura, e como não é seguro que, trocados, os novos ocupantes não sigam as mesmas determinações institucionais que o entrincheiraram, ser antissistema é adotar um comportamento inoperante e dissimulado. Todo o problema é a incapacidade de Bolsonaro de lidar com essas coisas impessoais, formais e detalhadas que são as instituições.

Se o que se espera dos agentes de poder e dos engenheiros institucionais é a busca pela estabilidade no esquema de instituições vigentes ou a inovação institucional por meio da imaginação, o antissistema bolsonarista é sobretudo um marco de política anti-institucional que, não podendo seguir dentro das instituições, nem as mudar, opta por um convívio de sabotagens sucessivas através de expedientes como os elencados.

Por: Tiago Medeiros.

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