Queda de mais um Boeing: Como o neoliberalismo causa acidentes aéreos

O neoliberalismo causa acidentes aéreos chine eastern airlines
Boeing 737-800, do voo MU-5735, que caiu na China
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Durante algumas décadas, houve um decréscimo estatístico muito expressivo de acidentes aéreos, o que aumentou a sensação de segurança para os usuários desse serviço de transporte essencial. Porém, nos últimos anos, alguns acidentes aéreos acenderam o alerta sobre a segurança de voo no mundo.

Autoridades chinesas acabam de confirmar um acidente aéreo da China Eastern Airlines no sul do país. A aeronave Boeing 737-800, do voo MU-5735, levava 123 passageiros e 9 tripulantes a bordo e caiu no condado de Tengxian, na Região Autônoma de Guangxi Zhuang. O avião havia decolado de Kunming Changshui, na província de Yunnan, às 13h15, hora local, e estava programado para chegar a Guangzhou, na província de Guangdong, às 15h07, hora local.

Chama a atenção o avião ser do mesmo modelo de um incidente no voo UA2425 da United Airlines que ia da Santa Ana na Califórnia para Austin o Texas no dia 11 de março, no qual o comandante anunciou uma explosão no compartimento de carga e deixou os passageiros em pânico, mas conseguiu pousar em segurança e ninguém ficou ferido.

Esses dois episódios são apenas os mais recentes, mas a Boeing está com sua imagem altamente prejudicada devido à comprovação de culpa da empresa em outros casos mostrados no documentário “Queda Livre: A Tragédia do Caso Boeing” da Netflix que trata de dois acidentes aéreos que geraram uma crise de reputação para a maior fabricante de aviões do mundo.

A Boeing instalou de forma imprudente um software para corrigir um problema estrutural em seus novos aviões, os 737 MAX, e mais grave ainda, não informou adequadamente os pilotos das empresas aéreas com anuência da agência reguladora da aviação civil nos EUA, a Federal Aviation Administration (FAA).

Basicamente, o novo software chamado Maneuvering Characteristics Augmentation System (MCAS) serviria para estabilizar o voo automaticamente devido a uma inadequação dos motores em relação ao tamanho das novos aviões. Durante os testes de voo do MAX, a Boeing descobriu que a posição e o tamanho maior dos motores tendiam a empurrar o nariz para cima durante certas manobras. Os engenheiros decidiram usar o MCAS para contrariar essa tendência, uma vez que um grande redesenho estrutural seria muito caro e demorado.

Devido tratar-se de uma alteração significativa na operação dos aviões, a descrição sobre o software deveria constar nos manuais do equipamento, o que implicaria em novos certificados de treinamento para as tripulações, logo, novos custos para as empresas aéreas que comprassem essas aeronaves.

Diante disso, a Boeing buscou certificar o MAX como uma mera versão atualizada do 737, o que atrairia as companhias aéreas pelo custo reduzido do treinamento e conseguiu aprovação da FAA para remover a descrição do MCAS do manual da aeronave, deixando os pilotos sem conhecimento do sistema quando o avião entrou em serviço em 2017.

Após um longo período de sensação de segurança na aviação civil no mundo inteiro devido à quase ausência total de acidentes aéreos, dois acidentes trouxeram à tona o escândalo da irresponsabilidade da Boeing na produção do 737 MAX. Em 29/10/2018 o Voo 610 da Lion Air que saiu de Jacarta na Indonésia caiu no mar 13 minutos após a decolagem, e em 10/03/2019 o Voo 302 da Ethiopian Airlines que saiu de Adis Adeba na Etiópia colidiu com o solo em apenas 6 minutos.

Rapidamente a imprensa e as famílias dos pilotos e passageiros mortos nesses acidentes questionaram a responsabilidade da fabricante diante do fato de que em 5 meses duas aeronaves de mesmo tipo, o 737 MAX, sofreram acidentes tão parecidos. A Boeing respondeu com uma política de relações públicas no sentido de culpar os pilotos, tendo inclusive colocado seus lobistas em campo para neutralizar a atuação dos sindicatos de pilotos norte-americanos no sentido de acusar os pilotos estrangeiros de falta de treinamento.

Em relação ao caso da Lion Air na Indonésia, o piloto sequer sabia da existência do MCAS, pois o sistema não havia sido informado pela Boeing para as empresas até o momento. Já no caso da Ethiopian Airlines, após o primeiro acidente, a Boeing notificou os pilotos sobre o MCAS, e acusou o piloto de não seguir as instruções de desligar o sistema em caso de mal funcionamento. Posteriormente foi provado que o piloto desligou o MCAS e mesmo assim o sistema alterou a trajetória da aeronave causando o acidente.

Nas audiências públicas no Comitê de Transportes do Congresso dos EUA sobre os acidentes causados pelo 737 MAX, os representantes sindicais dos pilotos norte-americanos defenderam as tripulações estrangeiras afastando a suposta falta de treinamento. O herói nacional dos EUA por ter salvo a vida de todos os passageiros ao pousar em segurança no Rio Hudson em Nova York após uma colisão de aves nos motores de seu avião, o Comandante Chesley Sullenberger, conhecido como Sully, em seu depoimento disse: “Não deveríamos culpar os pilotos e não deveríamos esperar que eles compensassem falhas nos projetos“. Aliás, vale a pena assistir também o filme “Sully” com Tom Hanks no papel de Sullenberger que explica como os aviões são pilotados por seres humanos e não por computadores, devendo-se levar em conta o fator humano na velocidade das tomadas de decisão durante um acidente aéreo.

O documentário da Netflix, mesmo que sem querer, acaba por explicar como o neoliberalismo e a financeirização da economia no regime de acumulação pós-fordista compromete a estrutura produtiva até mesmo na fronteira tecnológica do centro mais desenvolvido do capitalismo industrial, bem como destrói os mecanismos de regulação político-social até mesmo da segurança de toda a população que utiliza o transporte aéreo.

Até a década de 1990, os departamentos de engenharia e de segurança eram os setores “dominantes” na indústria da Boeing. A engenharia era responsável pelas inovações tecnológicas essenciais para o desenvolvimento dos aviões, e a fiscalização da segurança a prioridade número 1 da linha de produção. Essa “institucionalidade” interna da empresa privada era correlata às instituições público/estatais do regime de acumulação fordista que se consolidaram após a Segunda Guerra Mundial durante as décadas de 50 e 60, mas que entrou em crise nos anos 70 e 80. A regulação fordista que favorecia o setor produtivo e submetia com firmeza o setor financeiro, impunha à acumulação de capital uma forte institucionalidade de controles tanto do sistema financeiro, impedindo ou diminuindo a especulação, como do setor produtivo, com regulamentações trabalhistas e técnicas, a exemplo da essencial centralidade da segurança em um setor como aviação que coloca seres humanos para voar em alta velocidade dentro de uma caixa de aço.

Porém, o documentário mostra como a crise do regime de acumulação do fordismo e de seu modo de regulação e a ascensão de uma nova dominância do capital financeiro com o neoliberalismo afetaram o sistema produtivo da aviação ao ponto de prejudicar a segurança de voo, o que coloca em risco a vida de pessoas da própria classe dominante e de seus mais altos funcionários oriundos de setores médios.

Do lado da regulação jurídico-estatal, a ascensão do “gerencialismo” das Agências Reguladoras expressa a captura dos interesses privados sob a regulação estatal do neoliberalismo. A “independência” dessas agências na verdade é em relação à política, aos poderes eleitos pelo sufrágio universal, mas gera uma “dependência” cada vez maior das grandes corporações que controlam o lobby das indicações e do próprio enriquecimento dos burocratas capturados. Quando se trata de saúde, por exemplo, quem comanda a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) são as indústrias farmacêuticas e os convênios médicos, respectivamente. Quando se trata do sistema financeiro, quem controla o Banco Central são os próprios banqueiros privados. Na aviação não seria diferente, quem efetivamente dá ordens aos reguladores da FAA nos EUA ou da Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC) no Brasil são as empresas aéreas e as fabricantes de aeronaves.

Do lado da institucionalidade privada, o exemplo da Boeing é muito didático e bem desenhado no documentário da Netflix. Diante da globalização financeira e comercial e da concorrência da europeia Airbus, a produção de aviões nos EUA foi concentrada e centralizada pela fusão em 1997 entre a Boeing e a McDonnell Douglas (que por sua vez também já era fruto da fusão entre McDonnell Aircraft Corporation e Douglas Aircraft Company em 1968). Além da concentração monopolista característica do fordismo e aprofundada pelo pós-fordismo neoliberal, a Boeing mudou sua sede onde foi fundada em Seattle no estado de Washington para Chicago no estado de Illinois, o polo financeiro do meio-oeste dos EUA. Em Chicago, a gestão financeira da Boeing se isola do chão da fábrica, onde os departamentos de engenharia e segurança tinham a “hegemonia”, e os diretores passam a cortar gastos demitindo fiscais de qualidade e suprimindo etapas de procedimentos técnicos para aumentar as remunerações de dividendos em Wall Street, bem como, engordar seus bônus anuais, em detrimento do sistema produtivo de um setor que envolve o estado da arte de complexas tecnologias e coloca em risco a vida de seus usuários.

Vale a pena assistir, “Queda Livre: A Tragédia do Caso Boeing”, que explica como o neoliberalismo derruba aviões.