Sobre os atos do dia 11 de agosto: colônias não são democráticas

Sobre os atos do dia 11 de agosto colonias nao sao democraticas
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As discussões sobre o ato da democracia no Largo São Francisco debatem a democracia brasileira em abstrato, suspensa no ar, como um valor e não como um regime de poder, como de fato é – na brilhante síntese do weberiano Gabriel Cohn.

Esquecem-se que o tal pacto de 1988 é a cristalização schmittiana de um processo histórico, que jamais pode ser desligado de seu contexto geoeconômico e geopolítico. É da pena do federalista Hamilton a noção de que democracia depende da balança de poder internacional, da afirmação da soberania nacional.

Apesar das dificuldades empíricas de sua confirmação (ou refutação), a hipótese de Nikolai Kondratiev de que o sistema econômico mundial se comporta de acordo com ciclos longos foi aceita inclusive pela economia mainstream, enquanto ainda existia método científico nos departamentos dessa disciplina, antes da redução da maioria dos economistas em sacerdotes e charlatães do neoliberalismo. Segundo sua visão, esses ciclos, de duração de aproximadamente meio século, seguem o padrão de maturação de grandes paradigmas tecnológicos e, desde a Revolução Industrial na Inglaterra, teria havido menos de meia dúzia deles, sempre de caráter mundial, ainda que se expressando através das particularidades nacionais.

Esses ciclos se dividem em duas fases: uma expansiva, de aproximadamente um quarto de século de duração, que ocorre enquanto o novo paradigma tecnológico é absorvido, requerendo investimentos para tanto, o que aumenta a demanda agregada. O outro, depressivo, também de cerca de 25 anos, é seu simétrico oposto, e a tecnologia ainda não amortizada reduz os investimentos. É o velho que se recusa a morrer.

Os dois choques do petróleo nos anos 70 não foram os causadores da inflação do dólar, mas a degeneração da moeda estadunidense marcou o início da fase depressiva do ciclo longo associado com a indústria fordista, que fora inaugurado logo depois da Segunda Guerra Mundial. Seu período de transição durou até meados dos anos 1980, que culmina com a regressão capitalista em grande parte da Eurásia e a adoção do “socialismo de mercado” na China e, mutatis mutandis, no Vietnã.

É preciso dizer que houve muito crescimento econômico no neoliberalismo – mas não no Brasil. Ele se concentrou em grande medida no Leste Asiático (com exceção do Japão), que foi a região do Terceiro Mundo menos beneficiada durante o Kondratiev Fordista. A América Latina, ao contrário, tinha se dado bem no Kondratiev anterior, mas entrou em decadência e estagnação no atual Kondratiev.

No entanto, é preciso apagar o mecanicismo implícito na descrição dos ciclos longos. Maquiavel foi muito feliz em dizer que o príncipe precisa de virtude para aproveitar as oportunidades da conjuntura. Foi o pacto de poder que emergiu da Revolução de 1930 que conseguiu criar uma elite nacional, um “diretório político” na formulação de Guerreiro Ramos, que teve virtude para aquela oportunidade.

Esse diretório era composto pela aliança dos latifundiários exportadores de caráter feudal com o recém emergido capital industrial, este segundo como sócio menor, na formulação de Ignacio Rangel. Mais tarde, a classe trabalhadora organizada pelo sindicalismo varguista também compôs este diretório por alguns anos, até o golpe de 1964.

Por mais de 50 anos, esse diretório conseguiu se aproveitar primeiro dos conflitos interimperialistas entre o eixo e aliados e depois entre o bloco Imperialista e o bloco Terceiro Mundista para reinserir o Brasil de modo soberano no sistema econômico mundial. O crescimento brasileiro não foi um fenômeno isolado, embora o mais destacado (fomos os segundo país que mais cresceu no século passado, atrás somente da URSS) e vários outros países terceiro-mundistas não-alinhados também apresentaram crescimento expressivo, como foi o caso da Índia e de vários países do Oriente Médio, entre outros.

O Brasil cresceu tanto no Kondratiev anterior que estava exportando manufaturados para outros países terceiro mundistas e para o próprio centro capitalista. A subida dos juros no choque de Volcker visou quebrar justamente nosso desenvolvimento industrial, o que foi conjugado com pressão das transnacionais que viam suas matrizes no capitalismo central ameaçadas pelo sucesso de suas filiais. Geisel como último representante do diretório nacional-desenvolvimentista teve de peitar a IBM para defender a indústria de alta tecnologia brasileira, principalmente no setor de informática. Figueiredo chegou a ensaiar um Terceiro PND capitaneado por Delfim e Beltrão, mas foi tarde demais. A hiperinflação e os juros escorchantes do FED que arrebentavam com nossa balança de pagamentos impediram sua concretização.

As grandes manifestações da Diretas Já só foram possíveis por causa do apoio da grande mídia e dos governadores. Franco Montoro foi o primeiro governador paulista a deixar o metrô gratuito a fim de auxiliar nos protestos, tática que seria utilizada novamente pelos tucanos manobrados junto com a esquerda na agressão híbrida de 2013.

No governo Sarney, o canto do cisne do nacional-desenvolvimentismo foram as tentativas de choque heterodoxo para tentar controlar a hiperinflação, que vinha de fora para dentro. É nesse contexto que se dá a constituinte de 1988.

É bastante contra-intuitivo ler na pena de um dependentista marxista que o regime militar teve de adotar uma postura fortemente contrária ao imperialismo estadunidense no final dos anos 70 e na primeira metade dos anos 1980, pelo menos no que toca ao desenvolvimento industrial brasileiro. Em “Evolução Histórica do Brasil”, Theotônio dos Santos destaca o realismo geopolítico e geoeconômico de Golbery na reta final do regime militar. Para defender a Embrafilme, Glauber Rocha compareceu a um jantar com o presidente Figueiredo.

No entanto, com o movimento de massas nacionalista desarticulado após o golpe de 1964, o regime militar se viu sem base popular de apoio no momento em que teve de enfrentar diretamente o centro capitalista. O “Novo Sindicalismo” se estruturou em torno de um progressismo pró-Estados Unidos, quando os aparelhos de inteligência estadunidense aprenderam como fazê-lo pelas organizações não-governamentais e uma ideologia hostil ao partido leninista, visto como “fóssil stalinista”, e ao populismo latino-americano, supostamente marco do nosso “atraso”. Daí a antipatia dos fundadores do PT com os herdeiros tanto do varguismo, encabeçado por Brizola, como do leninismo, representado por Prestes, que foi vaiado por petistas nos anos 1980.

Essas contradições ficaram cristalizadas na Constituição de 1988. Surgiu um Ministério Público e um Judiciário hipertrofiados para tutelar a democracia, a fim de evitar o ressurgimento de um “novo populismo” – hipertrofia agravada nas décadas de petucanismo que gestaram o ovo da serpente do udenismo. Um complexo de tratados internacionais tolheram nossa iniciativa geoeconômica e geopolítica, sendo alguns desses dispositivos recepcionados no “bloco constitucional” como tratados sobre direitos humanos. O Brasil aderiu acriticamente à OMC e à abertura comercial consequente e se submeteu a organismos supostamente multilaterais como a OEA.

Com fundamento último desse pacto, está a emergência da plutocracia financista como força hegemônica na economia brasileira, fiadora do Plano Real que depende de capital volátil para manutenção da “âncora cambial” que deveria ser provisória e se converteu em permanente. O novo agronegócio, diferente de seu antepassado feudal, é de alta produtividade, mas se tornou apêndice das tradings agrícolas e dos bens de capital de alta tecnologia agregada das transnacionais – dependência matizada somente pelas firmas e instituições nacionais nesse setor, como o Embrapa e Petrobrás, cujo departamento de fertilizantes foi mais uma das vítimas do golpe de 2016.

A pandemia do início dos anos 20 deste século funcionou como a catalisadora do processo de decadência do Kondratiev que surgiu nos choques do petróleo. Deixar de pensar a democracia brasileira como suspensa no ar exige que pensemos tanto na inserção do Brasil no sistema mundial que está sendo reestruturado exatamente agora – e de maneira bastante violenta, como podemos ver com os recentes episódios na Ucrânia e em Taiwan – bem como o pacto de poder que teremos aqui no Brasil. Afinal, nas palavras de um insuspeito weberiano anti-marxista como Gabriel Cohn, democracia é regime de poder. Se queremos defender as justas liberdades individuais herdeiras do ideal positivista que presidiu a conformação de nossa República, precisamos ter em mente a necessária reinserção do Brasil de modo soberano no novo Kondratiev que se avizinha. Pois há somente uma verdade histórica:

Colônias não são democráticas.

  1. Eu sou um pouco mais direto que o articulista, que traz umas análises quase sempre muito boas. É simplesmente ser ingênuo ou querer se deixar enganar que o mesmíssimo antro que conjurou o Golpe de 16, que é o filho direto da Contrarrevolução de 32, que conjurou e formou toda a mais sórdida oposição a Dr Getúlio e a Revolução de 30 e é o berço de um hegemonismo pernicioso ao país e é ainda o pára raio de toda a colonização intelectual que o Brasil inteiro passa, vai defender alguma legalidade ou disso sair coisa boa.

    A “bucha” sempre foi espírito de porco e continuará sendo.

    Aquela presepada não passou de um comício Lulista e palco pro rentismo ter sua aura de meninos bons moços, moderados e “contra radicalismos”: a história do Brasil é prodigiosa desses bens falantes e sabemos que o roteiro sempre tem um fim previsível. É uma reedição do “#Elenão”!

    Fato é que todos os alicerces que geraram a Nova República devem ser repensados em profundidade e em certos casos, abolidos definitivamente. Tudo isso é caduco e em alguns casos, já nasceu assim.

    As eleições ao meu entender seguem em aberto, com vantagem para Bolsonaro. Imagino que muitos que fazem parte do corpo de leitores desse site são pessoas do meio acadêmico, de cidade grande, do sudeste, e digo a essas pessoas: não subestime o instinto de rato e de pragmatismo pela sobrevivência de Bolsonaro. Como formado no baixíssimo clero, tem o instinto de sobrevivência e conhecimento de seus pares deputados para formar o consenso pragmático para vencer o PT. Não subestimem o voto de interior e a política de interior, mto menos a rejeição moralista ao PT, mais ainda o ego inflado e o tom pernóstico do lulopetismo como um defeito mortal.

    O Brasil ainda terá que ser descoberto para que algumas pessoas de esquerda aceitem e entendam melhor o país que nasceram, mas que não vivem plenamente.

  2. Pessoal do Disparada, se pudessem postar o que coloquei, eu agradeceria mto se fizessem esse favor.

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