Athos Bulcão: arte e cultura como horizonte de país

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“Pintura pra mim é música silenciosa.” Documentário “Athos” (1998)

Visitei nesse sábado a exposição organizada pelo CCBB para celebrar o centenário de nascimento do Athos Bulcão. Com a curadoria de André Severo e Marília Panitz, a instalação se propõe a contextualizar a trajetória do artista que abriu os caminhos para a criação do projeto modernista brasileiro que é, pra mim, uma das coisas mais incríveis que já aconteceu no país.

A mostra entrega uma possibilidade bastante ampla sobre a história e legado do Athos e sua contribuição para a cultura brasileira, que vai desde monumentais intervenções na arquitetura, até a delicada confecção de desenhos, colagens e pinturas, chamando a atenção para o trânsito fluido e coerente que ele realiza por vertentes artísticas variadas.

Athos Bulcão nasceu no bairro do Catete, Rio de Janeiro, em 1918. No ano de 1939, depois de largar o curso de Medicina para dedicar-se à pintura, conheceu e se tornou amigo de outros pintores e arquitetos como Roberto Burle Marx, Carlos Scliar e Enrico Bianco. Quatro anos depois, em 1943, se encontrou com Niemeyer, na ocasião em que lhe haviam sido encomendados azulejos para o Teatro Municipal de Belo Horizonte. Em seguida, no ano de 1945, Cândido Portinari convidou ele para trabalhar como seu assistente no mural da Igreja de São Francisco de Assis, na Pampulha, em Belo Horizonte. O projeto arquitetônico, reconhecido marco do Modernismo, era de Niemeyer, com quem Athos começou a estabelecer, a partir de então, uma maior parceria.

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Athos Bulcão e Oscar Niemeyer. Fonte: Fundathos

Em 1957, Athos passou a colaborar nos projetos de construção de Brasília, para onde ele se mudou em 1958 e passou a integrar a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), criada pelo presidente Juscelino Kubitschek.

 “Eu gostei muito de Brasília. Fiquei hipnotizado com aquela falta de paisagem, o céu, esta vastidão (…) Para trabalhar era muito bom, aqui… Eu acredito muito em disciplina, no vai lá e faz alguma coisa. Eu fico imaginando quanta coisa as pessoas poderiam fazer e não fazem.”

Ele não acreditava na necessidade de inspiração para executar as tarefas, mas sim no talento e trabalho árduo, esses sim, segundo ele, eram dois elementos indispensáveis para tornar possível aquilo que se pretendia.

Nos dois anos anteriores à inauguração da Capital, em 1960, Athos já havia realizado seus dois trabalhos que se tornariam mais famosos: os azulejos da Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima e o mural do Brasília Palace Hotel. Hoje, ao todo, existem cerca de 200 obras dele na Capital, com inúmeras parcerias, como a do  arquiteto João Filgueiras Lima.

“Artista eu era, pioneiro eu me fiz. Devo a Brasília esse sofrido privilégio.”

Em 1963, ele passou a lecionar no Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília, depois de receber o convite de Darcy Ribeiro, que era seu amigo próximo.

Ter contato com a obra de Athos Bulcão e seu processo de criação é sentir que ele força os limites do possível e nos desenha um Brasil moderno, oxigenado e de uma beleza atemporal, que se faz presente em larga escala e produz abertura ao cotidiano impercebido pelas repetições.

Ele criou algo extraordinário no âmbito da azulejaria ao utilizar, com sabedoria e consciência artística, processos industriais ou semi-industriais que possibilitaram superar a necessidade do artista que fazia à mão, que dependia da técnica artesanal exclusivamente própria.

Descobri que ele trouxe, também, uma solução para a azulejaria brasileira que configuraria sua essência: elementos geométricos simples que, ligados a seus pares e assentados de forma aleatória, contemplam um mínimo de controle e uma majoritária liberdade, processo este cuja parte era legada aos operários, aos quais Athos transferia autonomia para composição dos painéis.

Essa obra colaborativa acaba por produzir uma aparência desorganizada que cria o ritmo, o movimento e o silêncio do vazio, representado pelos intervalos de azulejos brancos sempre inseridos a critério dos operários, num exercício informal da liberdade e do improviso, o mesmo pulsar criativo do improviso brasileiro.

“O que existe é um “princípio de composição”, a ser livremente manejado pelos operários. O resultado final, até certo ponto, escapa ao meu controle. Quando são empregados ladrilhos brancos, deixo igualmente a critério dos operários, a livre disposição de um só elemento, uma só “letra do alfabeto” para realizar uma escritura (…) Quando, em vez de uma “letra” existem duas, a disposição do desenho será, também, livremente manejada (…) Já quanto aos relevos, entrando em conta o fator “luz e sombra”, o painel segue sempre um estudo feito previamente em maquete.”

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Painel de azulejos, Centro de Formação e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados – CEFOR, 2003. Foto: Edgar César Filho. Fonte: Fundathos

A mostra relata que ele se propunha a instruir os operários sobre os projetos que desenhava, mas era contrário a qualquer forma de controle na montagem dos painéis, pois entendia parte integrante da obra a participação do outro nesse processo. Athos Bulcão chegou cedo em Brasília e viu toda a construção com muito sacrifício. Ensinou, desde então, a respeitar essas pessoas que vieram construir a nova capital federal.

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Athos Bulcão orientando os operários na montagem de um painel. Fonte: Fundathos

O trabalho com os azulejos marcou a estética de Brasília. Inseriu sua obra nos prédios, nas ruas, fez com que a arte fosse algo do dia-a-dia para que todo e qualquer sujeito que estivesse no ônibus em direção ao trabalho, ou em algum órgão público, pudesse perceber o seu entorno e experienciar a integração da arte com a arquitetura, em um ambiente livre. Uma linguagem poética de absoluta universalidade.

Além dos azulejos, Athos fez figurinos para as peças de Aníbal Machado, desenhou capas de livros para o escritor Fernando Sabino, foi ilustrador da Letras e Artes, do Jornal Manhã. Elaborou a coleção de revistas Módulo.

Ele atravessa a arte produzida no Brasil do moderno ao contemporâneo, deixando a contribuição de um artista que tencionou ao limite a potência poética particular de cada uma das diferentes técnicas de que se apropriou, um dos grandes artífices da cidade de Brasília, do imaginário visual brasileiro, próprio.

Mas não apenas o artífice de um projeto construtivo e estético, frise-se, Athos fez a arte com a mesma coragem do pensamento utópico de sua geração, que nos legou seres com a grandeza de romper com o jugo do colonialismo e fazer concretizar uma nação mais justa e autônoma: Juscelino Kubitschek, Darcy Ribeiro, Lucio Costa, Celso Furtado…

Os brasileiros fundadores e indispensáveis que, como Athos Bulcão, quiseram muito mais do que fazer história: quiseram pensar um país cuja potência de criar fosse capaz de materializar um legado que enriquecesse o patrimônio cultural comum da humanidade, e não apenas se propor a consumir passivamente os bens disponíveis no mercado, como nos lembra Celso Furtado.

Athos Bulcão é uma ode à criatividade como norte daquilo que queremos construir para o país e para o povo brasileiro.

 

Obs.: A exposição “100 Anos de Athos Bulcão” no CCBB São Paulo vai até o dia 15/10.