Arquitetura hostil e políticas públicas

Arquitetura hostil ou de exclusão é uma forma de planejamento urbano que evita que determinado grupo de pessoas utilize o espaço público da forma que lhe convier. Quer dizer, arquitetura maleficamente estruturada para que determinado grupo fique pouco tempo naquele lugar público ou não permaneça; por exemplo, bancos inclinados nos pontos de ônibus, bancos divididos que não permitem que se deite, rampas, instalação de pedregulhos, pontas de aço, etc.
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Por Thiago Silva – Em 05 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição Federal de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”, com o objetivo de instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, dentre eles o direito à moradia.

Além disso, a Constituição Federal tem como fundamento, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e como objetivo fundamental, dentre eles, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução as desigualdades sociais e regionais.

A Constituição Federal de 1988 tem como base o Estado do bem estar social, ou seja, aquele Estado que ao invés de ser passivo é um Estado intervencionista, preocupado em assegurar o bem estar dos cidadãos e em fornecer meios para que a população exerça seus direitos civis, sociais e econômicos.

A despeito da paradoxal desigualdade e excesso de privilégios que persegue a sociedade brasileira, para um grupo específico de pessoas os princípios, direitos e garantias fundamentais não são minimamente aplicados.

Para este grupo plural e (infelizmente) crescente conhecido como “pessoas em situação de rua“ há poucos direitos, míseras políticas públicas, muito preconceito, raiva e discriminação. Há, na realidade, reprodução da desigualdade, extermínio e exposição a risco e violência. Não por acaso, a maioria dessas pessoas são negras.

Importante lembrar que a população em situação de rua tem direito a usufruir dos benefícios das políticas públicas e do exercício pleno dos seus direitos sociais e civis, bem como tem direito de participar da vida e do governo do povo, o que é conhecido como cidadania. Porém, esse direito não é efetivado, porque essas pessoas são invisibilizadas.

O Estado tem o dever constitucional de, por meio das políticas públicas, garantir o exercício integral da cidadania como base de participação de qualquer cidadão no governo do seu país. No entanto, recentemente, tivemos mais um lamentável caso de “arquitetura hostil”.

Arquitetura hostil ou de exclusão é uma forma de planejamento urbano que evita que determinado grupo de pessoas utilize o espaço público da forma que lhe convier. Quer dizer, arquitetura maleficamente estruturada para que determinado grupo fique pouco tempo naquele lugar público ou não permaneça; por exemplo, bancos inclinados nos pontos de ônibus, bancos divididos que não permitem que se deite, rampas, instalação de pedregulhos, pontas de aço, etc.

Nas palavras da Ermínia Maricato “o urbanismo brasileiro (entendido aqui como planejamento e regulação urbanística) não tem comprometimento com a realidade concreta, mas com uma ordem que diz respeito a uma parte da cidade, apenas. Podemos dizer que se trata de ideias fora do lugar porque, pretensamente, a ordem se refere a todos os indivíduos, de acordo com os princípios do modernismo ou da racionalidade burguesa. Mas também podemos dizer que as ideias estão no lugar por isso mesmo: porque elas se aplicam a uma parcela da sociedade reafirmando e reproduzindo desigualdades e privilégios” (ARANTES, 2002, P. 122).

A Prefeitura Municipal de São Paulo instalou pedregulhos na calçada e em viaduto (conhecido como colchão de pedra) para “espantar” pessoas em situação de rua.

Quer dizer, além de subutilizar o orçamento destinado às pessoas em situação de vulnerabilidade social, utilizam de arquitetura hostil para que estas pessoas não utilizem o espaço público que “sobra” para descansar e, em muitos casos, morar.

Dados da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação do Ministério da Cidadania (SAGI/MG) em 2019 relevam que mais de 80% das pessoas em situação de rua são homens e mais de 60% se declaram pardas ou negras.

Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) revelou que houve um aumento expressivo de 140% da população em situação de rua entre setembro de 2012 e março de 2020.

Com base nestes dados, pode-se concluir que um dos “braços” do planejamento urbanístico brasileiro possui um viés preconceituoso, racista e excludente.

A arquitetura hostil não é um fato isolado, é uma prática generalizada, um projeto pensado e arquitetado pelos agentes públicos.

Infelizmente, não é um planejamento urbanístico “inclusivo”, e sim “excludente”. Tampouco representa uma política pública.

É utilizada para atingir frontalmente um grupo de pessoas em situação de vulnerabilidade social que é negligenciado, crescente e “invisível” aos olhos da sociedade e do Poder Público. Um grupo condenado perpetuamente ao desgaste, à violência, à miséria e ao sofrimento.

Para quebrar este círculo vicioso, é preciso desconstruir a lenda de que as pessoas em situação de rua escolhem, deliberadamente, permanecer naquela situação degradante. Definitivamente não! Em sua imensa maioria, são pessoas com histórias, motivos, experiências distintas, mas com o mesmo destino, que foram impostos em razão das desigualdades do racismo, sexismo, xenofobia e tantas outras formas de inferiorização dos seres humanos.

Importante mencionar que as pessoas em situação de rua são pessoas escorraçadas do espaço público que fornece segurança como escadas, tuneis etc, por agentes públicos e que, por consequência, perdem a referência de identidade e de pertencimento já tão limitada. Estas pessoas apenas são acolhidas quando ONGs, igrejas e assistentes sociais doam alimentos e roupa para saciar sua fome e sede. Para além de produtos e alimentos, as pessoas em situação de rua também necessitam de afeto, porque isso reconhece sua humanidade.

Como bem expôs o professor Gianpaolo Poggio Smanio (2013, p. 3) “a redemocratização do país fez crescer a percepção de que a efetivação dos direitos sociais depende de políticas eficazes que devem ser elaboradas e realizadas pelo Estado, em parceria com a sociedade civil organizada, mas, sobretudo, deve haver um controle efetivo sobre essas políticas e a forma de sua consecução”.

As políticas públicas devem atender a todo e qualquer grupo da sociedade, sem nenhuma distinção e com a sensibilidade de compreender a peculiaridade de cada um. A efetivação da garantia do exercício pleno da cidadania e dos direitos fundamentais não pode ser um privilégio de pequena parcela da população, e sim deve ser da sociedade como um todo.

Enquanto isso não ocorre, aplausos para pessoas e organizações com o espírito do Padre Júlio Lancellotti que, por incrível que pareça, é perseguido pelo trabalho que faz.

Por: Thiago Silva. Advogado, Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, integrante do grupo de pesquisa Estado e Direito no Pensamento Social Brasileiro, vinculado ao PPGDPE/Mackenzie.

Referências:

ARANTES, Otília, VAINER Carlos e MARICATO Ermínia. A cidade do pensamento único – desmanchando consensos. 3ª Edição. Editora Vozes. Petrópolis, 2002.

BERTOLIN, Patrícia Tuma; SMANIO, Gianpaolo Poggio (coords.). O Direito e as Políticas Públicas no Brasil. São Paulo: Atlas, 2013.
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200612_nt_disoc_n_73.pdf. Acesso em: 13 fev. 2021.