O apelo oportunista ao primeiro-damismo

O apelo oportunista ao primeiro-damismo
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Por Juliana Leme Faleiros – Filiada ao Partido Liberal (PL), em fins de maio de 2022, Michelle Bolsonaro foi alçada ao centro do palco da campanha para reeleição do atual presidente da República, Jair Messias Bolsonaro. Dada a queda de popularidade de seu marido, principalmente, junto ao eleitorado feminino, a equipe da campanha – não sem resistência dos filhos 02 e 03 do presidente – decidiu aumentar a participação da primeira-dama, permitindo seu acesso ao microfone.

Além da performance nas redes sociais e das inserções publicitárias, destaca-se sua presença no lançamento da candidatura de Jair Bolsonaro à presidência, pelo PL, e de Tarcísio de Freitas, pelo Republicanos, ao governo do estado de São Paulo. Em ambas as convenções, a primeira-dama manteve alto tom de culto religioso, pregando para convertidos, emocionando os presentes e intensificando a polarização ao tentar identificar-se com o bem e os adversários com o mal.

Na convenção para promoção de seu marido, pregou que o Brasil é uma “nação próspera, é rica. Ela só foi mal administrada.” Não se pode dizer que essa afirmação seja uma “fake news”, mas faltou completar que parte da má administração tem contribuição direta de seu marido e de seus enteados. Também não é “fake news” quando diz que quando o injusto governa o povo geme, pois é isso, além do descaso com a covid-19, o atual governo tem proporcionado o gemido do povo brasileiro por fome, raiva e sede.

Alinhada às posições de seu marido, Michelle fortalece as práticas segregacionistas e violentas e mantém a essência misógina do bolsonarismo sob os holofotes, bastando, para tal, rememorar dois episódios que ocorreram após a sua filiação ao PL: a agressão à vice-governadora de Santa Catarina, em evento antecipado da campanha à presidência, e a agressão à presidenta da Caixa Econômica Federal, no dia de sua posse para o comando da instituição financeira. A exploração de sua imagem jovem, articulada e cristã se coaduna com a intenção de manter as aparências e tentar distrair os eleitores sobre o que de fato interessa: um programa de governo que promova a justiça social.

No fundo, o apelo ao primeiro-damismo carregado em estereótipos de gênero é a marca daqueles que lutam pela permanência da autocracia e do patrimonialismo na sociedade brasileira. Além de Jair Bolsonaro, após a redemocratização, os ex-presidentes Fernando Collor e Michel Temer também fizeram uso desse expediente. Nada mais afastado do princípio republicano, da democracia, da racionalidade e do apreço à moral e à impessoalidade; o primeiro-damismo estreita o privado do público e anuvia a realização dos objetivos constitucionais, desrespeitando a res publica (coisa pública).

Frise-se que o primeiro-damismo não é título oficial nem “privilégio” da sociedade brasileira. Aqui, dadas as particularidades históricas, essa prática se consolidou durante o Estado Novo, com a mulher de Getúlio Vargas, Darcy Vargas, que assumiu a coordenação de um projeto fundamentalmente assistencialista e afastado do caráter racional das políticas públicas propriamente ditas. O primeiro-damismo reforça a ideologia de gênero já impregnada na sociedade que, no caso brasileiro, é talhada pela autocracia burguesa, ou seja, é antidemocrática, autoritária e fascista, com o claro intuito de manter as relações em moldes hierarquizados e desiguais. O primeiro-damismo põe e repõe uma determinada concepção de feminino marcada pela obediência, pela religiosidade e de que porta o dom para o cuidado.

Em verdade, Michelle Bolsonaro é mais uma porta-voz das escolhas de seu marido, incapaz de comunicar-se, que, numa fala falsamente mansa, inverte a realidade, destila o ódio e instiga à violência. Nas duas convenções, a primeira-dama performou, adequadamente, “não para dizer alguma coisa, mas para obter determinado efeito”, como explicou Goebbels. No caso brasileiro, o efeito esperado é a reconquista de alguns corações arrependidos de terem apertado 17 em 2018, apelando para a imagem de boa moça da primeira-dama.

Trazê-la para o centro do palco, nesse espetáculo de péssimo gosto que estamos vivendo desde a eleição de 2018, é uma derrota para o presidente. Fazer-se representar por uma mulher, ainda que seja sua esposa, é a demonstração de seu fracasso como representante e sua inabilidade em manter certas alianças que, até então, garantiram a impunidade no sem-número de crimes de responsabilidade. Não há primeiro-damismo que sustente, isoladamente, a barbárie e, não à toa, dada a tendência de confirmar o resultado das pesquisas de intenção de votos, especula-se a possibilidade de uma emenda constitucional para garantir cargos vitalícios de ex-presidentes e, assim, o foro privilegiado num grande acordo, “com Supremo, com tudo.”

Por Juliana Leme Faleiros, doutora e mestra em Direito Político e Econômico. Especialista em Direito Constitucional e graduada em Direito e Ciência Política. É advogada e pesquisadora sobre classe, raça e gênero na sociedade brasileira.