Alerta argentino: covardia da esquerda e Milei

Milei
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Milei foi o resultado da covardia da esquerda argentina em enfrentar as reformas estruturais necessárias para tirar o país do atoleiro em que foi metido por décadas de neoliberalismo. Fica claro a lição para toda a América Latina das consequências de não se enfrentar os dramas estruturais das economias do continente.

O roteiro nos é, infelizmente, bastante familiar. O kirchnerismo foi a versão dos hermanos da chamada “Onda Rosa”, as expressivas vitórias eleitorais de governos de centro esquerda em boa parte da América Latina nos primeiros anos do século XXI. Era uma lufada de esperança em um continente que fora devastado por regimes militares neocoloniais seguidos por décadas de neoliberalismo em novas democracias amarradas institucionalmente para evitar o retorno do nacional-populismo. Parecia que finalmente seria possível ver um novo anti-imperialismo em nosso canto do Terceiro Mundo.

Houve de fato algumas experiências exitosas. As vitórias da Venezuela, Nicarágua e Bolívia foram pontos altos da tal Onda Rosa. Outras, como Brasil, Argentina, Chile e Uruguai foram muito mais tímidas, caracterizadas pela continuação no essencial do neoliberalismo com discretas pitadas de redistribuição de renda como uma forma de uma digestão moral da pobreza. O caso clássico foi a aplicação dos preceitos da Escola de Chicago na política educacional de Haddad, na forma de vouchers educacionais que beneficiaram as fábricas de diplomas em um país em acelerada desindustrialização.

Sejamos justos: os hermanos conseguiram reverter algumas privatizações, como a absurda entrega da sua petroleira YPF. Os governos do casal Kirchner promoveram algumas políticas industriais realmente interessantes, como um (hesitante) regime cambial para favorecer as exportações de manufaturados, uma pequena e curta expansão fiscal ao gosto do neokeynesianismo insosso e alguns acordos comerciais no âmbito do Mercosul – esses sim realmente avançados.

No entanto, no geral, os governos neoperonistas foram marcados por um falso realismo que entregava o principal – uma política desenvolvimentista – em troca do acessório. Tal como em nosso canto tórrido do Terceiro Mundo, todo esse “bom mocismo” do kirchnerismo não foi suficiente para evitar a sanha imperialista dos EUA. O judiciário, cooptado por ONGs ligadas a Washington, agiu para desestabilizar o país, o que foi combinado com desgaste popular dos governos social-liberais do casal Kirchner. O resultado foi a catástrofe chamada Mauricio Macri.

Como era de se esperar, o neoliberalismo suicida de Macri, além de destruir o país, provocou grande insatisfação popular e levou a sua derrota no pleito de 2019. Foi seu governo entreguista que levou às alturas a praga da dolarização da economia argentina, processo de longo prazo que remonta ao fim da ditadura militar de lá, mas se acelerou intensamente nos últimos anos. Não foi uma vitória fácil: Cristina Kirchner, acossada pelo lava-jatismo argentino, apoiou relutantemente a candidatura de Fernández, que havia rompido anteriormente com o então casal presidencial.

Fernández era a cara da Onda Rosa latino-americana. Sua ruptura com o casal Kichner no final dos anos 2000 já havia acontecido por achar demasiadamente radical o bom mocismo do neoperonismo. Em seu mandato, não só manteve a trajetória neoliberal do país, como protestou contra as críticas de Cristina Kirchner, que estava em sua base de governo até romper uns anos depois por defender uma política econômica um pouco menos ortodoxa.

O drama argentino gira em torno da dolarização e do perpétuo estrangulamento da oferta de dólares de uma economia cada vez mais dependente de importações. Essa implosão de sua soberania monetária e de seu tecido produtivo se traduziu em uma rampante inflação, que ultrapassou a casa dos 100%, mantendo-se consistentemente nesse patamar. Se o Brasil não estivesse chafurdando em uma trajetória de autodestruição, poderia ajudar os hermanos e se ajudar no processo, gerando demanda para nossa indústria ao satisfazer as necessidades de importações da Argentina em moeda local, sem passar pelo papel verde impresso no império estadunidense.

Em um raro lampejo de consciência nacional, algumas hesitantes medidas foram tomadas no âmbito do Mercosul para este fim. Buenos Aires bateu diversas vezes às portas do Palácio do Planalto atrás de auxílio financeiro para manter a economia de nossos vizinhos girando, o que também atende aos nossos interesses nacionais.

Motivado pelo mais puro realismo, o governo de Fernández também se viu compelido a uma grande inflexão geoeconômica. A Casa Rosada pleiteou sua entrada nos BRICS – almejando, quem sabe, um lugar na Rota da Seda patrocinada por Pequim – e junto do Brasil anunciou uma tentativa de reforma monetária no âmbito do Mercosul, para desdolarizar sobretudo o comércio bilateral entre os dois países. Ainda que esse programa tenha aspectos muito problemáticos, vamos mantê-lo entre os pontos positivos do governo de Fernández.

Todavia, nenhuma dessas medidas surtiu efeitos na realidade econômica argentina. A popularidade do governo rapidamente derreteu.  As eleições da Argentina tem uma grande diferença em relação às do Brasil. Lá as primárias são obrigatórias para todos os partidos, conhecidas pela sigla PASO, que aconteceu no último domingo (13/08). Essa espécie de treino eleitoral tem por finalidade eliminar os candidatos nanicos, pois somente os políticos com pelo menos 1,5% dos votos na PASO podem participar das eleições de verdade, cujo primeiro turno está marcado para 22 de outubro deste ano.

Foi aí que nós, brasileiros, tivemos o prazer de conhecer o estereótipo argentino que é Javier Milei.

Com suas protuberantes costeletas, Milei é uma caricatura de argentino. Tal como o bolsonarismo era esteticamente exagerado porque era uma performance de falso nacionalismo, o ancap porteño (nascido em Buenos Aires) é uma falsa performance do que é ser argentino. Seu programa econômico é composto por slogans vazios, voltados para a imbecialização generalizada das redes sociais, como abolir o Banco Central, extinguir o ministério da educação e outras bizarrices similares. O mais grave, no entanto, é sua promessa de total e completa destruição do que sobrou da moeda argentina.

A pergunta que fica é: como essa piada de mau gosto foi o candidato mais votado no PASO?

Há vários elementos que podem responder isso. Em primeiro lugar, a identificação entre os trabalhadores argentinos do fracasso neoliberal com o identitarismo fomentado pelas ONGs imperialistas. Se você, leitor, está cansado desta praga cultural no Brasil, saiba que nossos hermanos são acometidos mil vezes mais por isso. Milei, como legítimo comediante, aproveitou a vida fácil que a esquerda argentina lobotomizada pela agenda “woke” lhe ofereceu.

Em segundo lugar, a ausência de Macri. Com o ex-presidente fora do pleito, a liderança da direita coube a Patricia Bullrich, que representou a coalização partidária criada por Macri. Esta ficou em segundo lugar no PASO, atrás somente de Milei, reforçando o colapso eleitoral da esquerda argentina. A identificação de Bullrich com Macri pode ter ajudado em seu desempenho mais fraco. Segundo o mapa eleitoral do jornal neoliberal Clarin, a coalizão do ex-presidente foi vitoriosa somente nas províncias de Entre Rios e Corrientes e na capital argentina, conhecida pelo acrônimo CABA (Ciudad Autónoma de Buenos Aires).

 

Mapa Paso 2023
Mapa Paso 2023

Chama a atenção no mapa acima o desempenho eleitoral de Milei no Atacama argentino, nas províncias pintadas de roxo e ricas em lítio, onde recentemente o governo provincional de Jujuy tomou medidas em direção a privatização das jazidas do minério que pode ser a principal commodity do nosso século. Salta, a província marcada em roxo escuro no noroeste argentino perto de Jujuy, também tem lítio em abundância.

Em terceiro lugar, o fato de ser uma prévia da eleição sem impacto concreto pode ter estimulado o voto de protesto. Não seria a primeira vez que os resultados do PASO são desmentidos pelo primeiro turno e ainda há algum espaço político para reverter o pior. Entretanto, do jeito que está, o que vem se desenhando é um segundo turno entre Milei e Bullrich.

Em quarto lugar e mais importante foi a covardia da esquerda argentina em lidar com as principais contradições estruturais do país latino-americano. Sem uma política industrial consequente e sem a criação de um movimento de massas para vertebrar um processo emancipatório nacionalista e socializante, tudo o que restou para a esquerda se diferenciar dos neoliberais eleitoralmente foi a agenda “woke”. Daí a porteira aberta para que um comediante liberal se refastelasse nas ruínas da outrora grandiosa sociedade argentina.

Como disse certa vez um barbudo alemão, “de te fabula narratur”, é de ti que fala a fábula. Milei é o alerta argentino do que pode acontecer se o Brasil continuar acovardado, sem enfrentar os desafios estruturais do nosso país.