A urgente tarefa de politizar a saúde mental

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Por Caio Gontijo – Mark Fisher, britânico, teórico cultural, filósofo de inspiração žižekiana e jamesoniana, professor no Departamento de Cultura Visual em Goldsmiths, University of London, se tornou conhecido no início dos anos 2000, ao engatinhar da internet, por seu blog “k-punk”. Com o título de seu livro de maior sucesso, “Realismo capitalista” (2009), Fisher nomeou o complemento ideológico do nosso atual arranjo econômico ‘neoliberal’.

Sob tal ‘realismo’, que naturaliza a escassez econômica como inevitável e aborta sua crítica, tem-se uma subjetividade marcada pela desesperança pessoal. A ação se percebe como inútil nesse contexto; só a esperança sem sentido tem sentido. A religiosidade supersticiosa tende a ser o primeiro recurso dos desamparados (especialmente se o Estado se retira dessa tarefa). No senso comum, proliferam justificativas internas e metafísicas para as dificuldades da vida. A identidade entre a minha vontade e a de Deus tende à aceitação de hierarquias sociais como desígnios divinos.

Tem-se aí um ‘realismo’ particular. Em conformidade com uma ‘realidade’, mas que logo a iguala ao ‘real’. Essa também é a confusão entre ‘estar’ e ‘ser’. Contrariamente ao realismo (capitalista), tudo mais é, naturalmente, idealismo. E qualquer posição idealista é ridicularizada pelo senso comum que odeia subjetivismos. Mark Fisher dá vários exemplos da presença desse tipo de ‘realismo capitalista’ na cultura pop, no entretenimento. A fim de ‘get real’, ‘mandar a real’, a violência à la Tarantino é exaltada, e o que se opõe a ela deve ser necessariamente uma inocência ‘trouxa’. Um exemplo brasileiro, podemos propor, seria Tropa de Elite, tendente a uma crítica à violência e corrupção estrutural dos aparatos repressivos de Estado, terminou acidentalmente heroicizando o BOPE e o Capitão Nascimento; e necessitou de uma sequência, Tropa de Elite 2, para explicitá-la.

Similarmente, também é um imperativo desse realismo frequentar-se os limites do estresse mental. Com uma inédita maioria de precarizados, desempregados, desalentados, etc. introduz-se um tempo de esgotamento marcado por doenças mentais, como depressão ou burnout, tornando “pensamentos negativos” análogos a pecados: o ‘eu’ luta contra si mesmo como contra um inimigo (“eu sou meu maior inimigo”). A dor dessa luta é tolerada se for usada em prol da otimização pessoal-profissional. O contrário disso é pura ‘fraqueza’ interna, marcada com o mesmo sinal negativo da inocência idealista dos não-violentos (‘não-realistas’).

Fisher comenta que existia (a conjuntura na qual escrevia estava marcada pela crise de 2008), no Reino Unido, uma ‘epidemia’ de doenças mentais, particularmente depressão (que já era a enfermidade mais tratada no sistema público de saúde britânico, NHS) e ansiedade. A questão da saúde mental é paradigmática de como opera o realismo capitalista: nega-se qualquer possibilidade de causalidade social das doenças mentais, tratando-as como uma questão fundamentalmente químico-biológica, externa ao social.

Mas Fisher vê aí uma rachadura penetrável à lógica do realismo capitalista, cujo potencial para subvertê-lo é grande e subvalorizado. A saber, mesmo com a rede de solidariedade, de afeto, às vezes a concretude da ajuda financeira etc. provida pela crescente religiosidade (no Brasil, neopentecostal), tem-se apenas uma mitigação do problema.

O próprio Mark Fisher, cujo destino foi prova da concretude de seu argumento, tirou sua própria vida em 13 de janeiro de 2017, aos 48 anos, após uma longa luta contra a depressão, sobre a qual escrevia abertamente. Permanece atual e cada vez mais relevante, no entanto, sua sugestão de uma positiva politização do tema. Essa tarefa deve ser contemplada, na dimensão de seu conteúdo, por um sólido projeto; e na dimensão de sua forma, por uma eficiente comunicação política:

“Se é verdade, por exemplo, que a depressão é constituída por baixos níveis de serotonina, o que ainda precisa ser explicado é por que determinados indivíduos apresentam baixos níveis de serotonina. Isso requer uma explicação social e política; e a tarefa de repolitizar a doença mental é urgente se a esquerda quiser desafiar o realismo capitalista”. (Fisher, 2009, p. 43, tradução do autor).

Nosso momento atual é posterior ao de Fisher, mais grave, e fruto do desenvolvimento do mesmo processo. Algumas de suas tendências se aprofundaram mesmo antes da pandemia de COVID-19 e nela foram levadas ao limite. A pandemia apresentou um profundo impacto psicossocial. A quarentena e o isolamento social necessários geraram uma infinidade de manifestações (entendidas pelo realismo capitalista como estritamente psiquiátricas), como pânico, ansiedade, comportamento obsessivo, paranoia, depressão e transtorno de estresse pós-traumático.

Os trabalhadores da saúde, crianças, idosos, pacientes psiquiátricos e comunidades carentes são especialmente afetados. Além disso, um estudo publicado recentemente na The Lancet, cobrindo 62.354 casos COVID-19 nos EUA, mostrou que os pacientes COVID-19, em comparação com grupos de controle de pacientes com Influenza e outras infecções, têm uma chance significativamente maior de desenvolver transtornos de ansiedade (especialmente transtorno de estresse pós-traumático), depressão e insônia. A incidência de qualquer diagnóstico psiquiátrico nos 14 a 90 dias após o diagnóstico de COVID-19 foi de 18,1% (contra 13,3% para Influenza), incluindo 5,8% que foi um primeiro diagnóstico (contra 2,8% para Influenza) (Taquet et al, 2020 )

Se não nos confundimos com a distinção entre ‘ser’ e ‘estar’, se seguirá lógica a tarefa de superar o realismo capitalista no seu particular da saúde mental e apresentar essa superação ao todo social numa linguagem compreensível. O melhor exemplo disso foi o slogan de Ciro Gomes em 2018: “eu vou tirar seu nome do SPC”. E precisa dizer mais? Nesse caso, se seguiria: “você está se sentindo muito mal?” E tudo mais nessa comunicação se segue lógico: tocar na experiência familiar de que tudo parece estar dando errado, embora as pessoas lutem obstinadamente; no sentimento daquele que não quer mais depender da ajuda de amigos, familiares, igreja; na sensação comum daquele que perdeu gente muito querida nessa pandemia; no lugar comum do desamparo. Ao que se seguiria também logicamente a resposta: reconhecer a verdade de que tudo piorou muito, e lembrá-lo que não se deve ter vergonha nem culpa. Ninguém se importou com sua saúde mental até agora e isso é uma vergonha histórica nacional. A proposta deve ser simples, afirmar o concreto óbvio, de que tudo isso passa pela renda, o pouco emprego que há não presta, não dá para pagar todas as dívidas e poder comprar o que falta. O compromisso firmado, explícito como uma promessa pessoal, deve ser gerar tantos empregos com tal salário médio; um investimento público jamais visto, para combater uma tragédia também jamais vista, cujo exemplo atual já há nos Estados Unidos. Como isso ainda pode não ser suficiente, um investimento igualmente ousado na reestruturação e ampliação para reverter o sucateamento do Sistema Único de Saúde, com ênfase em saúde mental, para que todos tenham acesso aos profissionais e tratamentos aos quais têm direito.

Por: Caio Gontijo.