Por Fabio R. Saez Sola – Nos últimos 20 anos, mais de um milhão de alunos deixaram as escolas públicas e migraram rumo às escolas particulares. Podemos atribuir esse número impressionante ao fato bem divulgado de que o país alargou a sua classe média na primeira década dos anos 2000. Mas a ascensão econômica de uma grande parcela da população não explica plenamente o porquê deste grande fluxo de alunos de uma rede sem mensalidades, com valores pagos indiretamente através do recolhimento de impostos para uma rede onde o aluno paga efetivamente por tudo: uniformes, livros, lanche, transporte e mensalidades. Basta atentar que os filhos da elite estudam em instituições superiores públicas e em não em faculdades privadas.
Os serviços públicos no Brasil vêm sofrendo um desmonte desde o final dos anos 1990. A onda neoliberal perpetrada pelo tucanato faz aquilo que sabe melhor: destruir a qualidade de uma empresa pública para que possa vendê-la barato, sob os aplausos da massa que se acredita intelectual porque consome umas manchetes de jornal e uns telejornais que selecionam muito bem o tipo de notícia que divulgarão.
O desmantelamento da educação pública paulista teve dia certo para começar: a posse do tucano Mário Covas (1930-2001), que deu início à longa e penosa dinastia psdbista, empregou toda a sorte de retrocessos na educação pública, sob o pretexto de “racionalizar” a gestão da educação. Dali em diante mudam (pouco) os tucanos, mas os jargões são sempre os mesmos.
Houve o fechamento do número de escolas; o aumento de alunos por sala de aula; o Programa de Demissão Voluntária (PDV), onde os professores pediam exoneração do cargo público em troca de compensação financeira. A carreira docente passou por grande precarização: a lotação da sala de aula aumentou demais, até chegarmos à hedionda capacidade máxima de 55 alunos; os salários foram achatados; os concursos públicos convocados sempre alargando – e muito – o prazo legal de para serem elaborados, o que fez surgir um enorme contingente de professores de contrato precário, chamados antigamente de ACT (admitidos em caráter temporário), hoje categoria O. Segundo a LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação – os concursos de professores devem ser organizados de dois em dois anos até que seja suprida a demanda por profissionais. O Estado de São Paulo promoveu o último certame em 2013, negligenciando a lei em mais de sete anos. Dos docentes aprovados, cerca de 15 mil nunca foram chamados. Assim, o terreno fértil para a contratação precária de profissionais, um dos alicerces do neoliberalismo charlatão que vigora no país, ficou pronto.
A situação dos professores categoria O mostra o caráter mais perverso do neoliberalismo tucano: são docentes contratados em regime precário. Não possuem o direito a se ausentar do trabalho – mesmo em situação de enfermidade, os atestados médicos não são aceitos e qualquer falta no trabalho lhes quebra o contrato. Não acessam o convênio médico fornecido pelo Estado, o IAMSPE, aos outros professores. Até o direito constitucional de greve lhes é vedado, sob pena de rompimento da contratação. Até há pouco tempo, para interromper qualquer possibilidade de vínculo empregatício, o Estado cessava-lhes o contrato de trabalho e colocava-os numa perversa “quarentena”, onde o professor ficava 40 dias sem trabalho na virada do ano letivo, justamente para não estabelecer o vínculo empregatício, mas também para ficar o período sem remunerar o profissional. Passada a quarentena, outro suplício: a mortal “duzentena”, onde o docente de contrato precarizado ficava impedido de trabalhar por um ano letivo inteiro. A necessidade de quadro de professores disponíveis acrescida da luta dos defensores da educação na ALESP fez a “duzentena” regredir para a “quarentena”. Reiteramos: a problemática do professor precário é gerada pela falta de concurso público para suprir a falta de profissionais da área, um descumprimento da lei federal.
Os professores estão há mais de duas décadas padecendo do descaso, da perseguição e precarização do seu trabalho. Essas condições terríveis às quais são submetidos resultam muitas vezes, dentre muitas enfermidades, na síndrome de burnout. De acordo com esse trecho selecionado do site Nova Escola: “A exaustão emocional é uma das principais características do burnout. Segundo definição da Organização Mundial de Saúde, abrange sentimentos de desesperança, solidão, depressão, raiva, impaciência, irritabilidade, tensão, diminuição da empatia, baixa energia, fraqueza, preocupação, cefaleias, tensão muscular e distúrbios de sono”. Mais uma peça se encaixa na destruição da escola pública: os profissionais da escola pública acabam por faltar muito e se afastar em licenças médicas por falta de saúde mental. Para se livrar dos professores concursados, uma vez que já declarou os funcionários públicos como inimigos, o Governo Dória tem criado empecilhos para os professores trabalharem em duas redes – realidade de grande parte dos docentes. Mudou as regras dos horários de trabalho, forçando os professores a passar mais tempo nas escolas estaduais, para que consiga enxugar o quadro de funcionários sem nenhuma compensação financeira.
O golpe neoliberal então se configura. Pensem numa escola em que as salas são superlotadas, os prédios deteriorados, a aprovação é automática pela distorção do conceito de progressão continuada, os professores ou são de contrato precário que não sabem onde estarão no dia de amanhã, ou são concursados que se afastam em razão da falta de saúde física e mental. Quem estuda numa escola dessas? Simples: os pobres, os que realmente não possuem condições de pagar uma escola privada que proporcione um pouco mais de qualidade de ensino. E se a escola é para pobre, por que um governo neoliberal demonstraria qualquer zelo por ela?
Então o projeto se solidifica: destruir a escola pública para que os que têm condições migrem para a rede privada. Assim, o Estado neoliberal deixa de gastar recursos com a educação, mas percebe impostos das instituições privadas de ensino. A educação, dentro da visão neoliberal, só tem duas perspectivas: na privada, apurar lucros; na pública, reduzir gastos. De acordo com o Portal Aprendiz, entre 1996 e 2004, o número de escolas privadas no Estado de São Paulo aumentou em assustadores 46,6%. Os dados são do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo (Sieeesp). Não é obra do acaso.
A escola pública sofre todo tipo de violência, do roubo das merendas até a reabertura em meio ao caos da pandemia de Covid-19. Hoje as escolas estaduais são para alunos da classe D e E, precisamente os mais desamparados. Justamente os que evadem a escola pública para trabalhar, o que faz os tucanos promoverem novas “reorganizações escolares”, fechando ainda mais salas de aulas e escolas. Os vulneráveis do país ficam sem escola, sem educação. Desassistidos, muitos engrossam as fileiras do crime. Neoliberalismo preocupado? Nada. A tragédia criminal gera lucros para as empresas dos amiguinhos: bancos vendem mais seguros, empresas de segurança privada aumentam a clientela, vendedores de equipamentos de segurança, de cães de guarda e outros se refastelam nos lucros gerados pelo crime e pelo medo da violência.
As escolas privadas, por sua vez, face à terra arrasada praticada na educação pública, precisam ser apenas um pouquinho melhores do que a rede governamental. O sucateamento da rede pública permite que as escolas particulares paguem péssimos salários aos professores e exijam que o corpo docente esteja o tempo todo à disposição da escola. Temerosas de perder alunos para a concorrência, praticam uma vergonhosa progressão continuada, à guisa das escolas estaduais paulistas.
Ousamos projetar alguns desfechos possíveis para a educação pública paulista. As condições de trabalho inviáveis para os professores levará muitos à exoneração do cargo – há uma pressão do Governo Dória, que tenta impedir os docentes de trabalhar em outras redes mais vantajosas aos profissionais, para que acabem por sair do Estado. Os alunos que não foram para as instituições privadas, são da classe D e E, não importam para o Estado; logo, é bem possível que alguma empresa dos amiguinhos forneça para o Estado serviços terceirizados de professores, por valores exorbitantes. Alguma empresa de amiguinhos que contrata professores precarizados para fornecer os seus serviços ao Estado de São Paulo.
É responsabilidade de todos impedir o prosseguimento dessa demolição da educação pública paulista. Inclusive de quem paga escola particular para os filhos.
Por: Fabio R. Saez Sola, professor de História, Sociologia e Ciências da Religião na rede estadual e particular de São Paulo.