A Bovespa e a subordinação do Brasil ‘real’

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Por Daniel S. Kosinski – Já faz anos que o índice da Bovespa vem batendo sucessivos recordes. Para nos limitarmos apenas ao período mais recente, no início de janeiro, o IBOV ultrapassou 125 mil pontos . No dia 7 de junho, superou 131 mil, embora tenha fechado um pouco abaixo disso. Desde então, entrou num ciclo de baixa, mesmo assim conservando-se acima dos 105 a 110 mil. No pior momento desde o anúncio global da pandemia, no dia 20 de março de 2020, o índice chegou a fechar em 66.954. Logo, apesar das perdas nos últimos meses, a bolsa de valores brasileira ainda apresenta enorme valorização desde que teve início a maior catástrofe sanitária global das últimas décadas.

Paralelamente a isso, o Brasil “real” afundou ainda mais naquela que vem sendo, de longe, a pior crise da sua história. Em junho, segundo o IBGE, a taxa de desemprego “aberto” foi recorde: 14,7%, representando 14,8 milhões de trabalhadores, um aumento de quase meio milhão de pessoas em relação ao trimestre anterior. No mesmo momento, a população considerada “ocupada” ficou em 85,9 milhões, uma queda de 3,3 milhões em relação ao ano anterior. Isso representava apenas 48,5% da população em idade de trabalho. Além disso, o contingente de “subutilizados”, que incluem “desocupados” e “subocupados”, alcançou 33,3 milhões. Já os trabalhadores “informais”, que incluem os sem carteira assinada, empregadores ou empregados por conta própria e até mesmo os sem remuneração, somaram 34,2 milhões, representando uma taxa de informalidade de 39,8%, alta de 1% em doze meses.

Ou seja, neste momento, várias dezenas de milhões de brasileiros não conseguem trabalhar ou o fazem sob as condições mais incertas e precárias. Estamos vivendo numa sociedade de desemprego massivo e estrutural que naturalizou esse gigantesco desperdício de força de trabalho e todas as consequências a isso associadas, como a instabilidade social e a explosão da criminalidade urbana. Bem menos da metade da nossa população capaz de trabalhar desfruta, neste momento, do “privilégio” de ter um emprego digno desse nome, conferindo direitos, rendas e garantias adequadas.

Portanto, o trabalho no Brasil foi, simplesmente, devastado. Além da destruição implacável da legislação trabalhista, esse cenário também é o resultado da desestruturação produtiva do país, ambos efeitos de três décadas de desmonte neoliberal inclemente. Em 2020, o PIB brasileiro caiu 4,1% e a indústria manufatureira contribuiu com apenas 11,3% do produto nacional, o menor percentual desde o início da série histórica, em 1947 (em 1985, correspondeu a 24,5%). Trata-se de uma desindustrialização acelerada e absolutamente precoce dados os nossos níveis de renda e capacidade tecnológica e de ainda sermos, afinal, um país que tem que ser construído. A indústria automobilística, por exemplo, considerada um dos setores mais dinâmicos no Brasil na segunda metade do século XX, produziu pouco mais de dois milhões de veículos, uma queda de 31% em relação a 2019 e a menor produção desde 2003. No seu melhor ano, em 2013, a produção nacional superou 3,7 milhões de veículos.

Já no primeiro trimestre de 2021, o PIB brasileiro voltou ao nível pré-pandemia. Mas isso significou apenas que ele permanecia 3,1% abaixo do nível máximo, alcançado no primeiro trimestre de 2014. Ou seja, em termos de produção, nos encontramos hoje aproximadamente onde estávamos no final de 2012 e início de 2013 . Com o crescimento da população, a renda per capita brasileira caiu cerca de 11% entre 2013 e 2020 . Entre 2011 e 2020, tivemos a mais baixa taxa de investimentos em meio século, de 17,7% ao ano, com irrisórios 15,3% em 2019 – antes da pandemia, é preciso ressaltar – e 16,4% em 2020. Em 2013, essa taxa foi de 20,9%; nas décadas de 1970 e 80, de 21,9%.

Portanto, não há nada na nossa história que se assemelhe à crise atual em duração e profundidade. Nenhuma década foi tão “perdida” quanto a última e, por enquanto, nada indica perspectivas reais de sairmos dela. Porém, sobre os destroços desse Brasil “real” – o do emprego, da produção, da circulação e do consumo de bens e serviços, esse no qual vivemos e do qual dependemos para a nossa sobrevivência física e bem-estar social -, a bolsa de valores vem aumentando, continuamente, os seus ganhos. Afinal, sob quais expectativas de produção, investimentos, demanda e consumo repousa a euforia desses “investidores”? O que explica essa aparente contradição, a perda de relações entre os ganhos financeiros e esses índices lamentáveis?

O que acontece é que, de fato, não há contradição alguma. Ao contrário, a Bovespa está prosperando justamente às custas das dificuldades, maiores ou menores, pelas quais 200 milhões de brasileiros estão passando. Ela opera num circuito de acumulação amplamente dissociado desse Brasil “real”, empobrecido.

Com a chamada “financeirização” do capitalismo global, desatada sob o comando dos Estados Unidos nas últimas quatro ou cinco décadas, a reprodução do dinheiro em todo o mundo vem se emancipando, cada vez mais, da produção material – com a notável exceção da China, praticamente o único país a exercer uma inserção soberana e estratégica nesse mundo dito “globalizado” e a manter as suas finanças sob rígido controle governamental, subordinadas ao seu projeto nacional. Com a liberalização dos fluxos de capitais entre a maior parte dos países e a criação de um número virtualmente infinito de instrumentos financeiros, cada vez mais o dinheiro tem encontrado oportunidades para se multiplicar dispensando a intermediação de relações sociais concretas. Em termos marxistas, o circuito “normal” de acumulação D – M – D’, no qual a produção e a realização de mercadorias é uma etapa intermediária entre o dinheiro inicial e o final, maximizado, vem sendo substituído pelo circuito D – D’, no qual o dinheiro realiza a sua valorização por meios predominantemente financeiros, à revelia da produção e do trabalho.

Em essência, é disso que se trata essa “financeirização”: o funcionamento do capitalismo está cada vez menos intermediado pela produção e circulação de bens materiais. Nesse capitalismo “financeirizado”, o mundo “real” vem se tornando supérfluo para os donos do dinheiro, emancipado. Porém, mais do que isso, acabou por ser amplamente dominado, subordinado por eles.

Em rigor, não foi diferente no Brasil, país de inserção historicamente periférica no capitalismo global e que foi entregue, sem ressalvas, a essas “novas” práticas pelas suas elites dirigentes tecnocráticas. Por isso, cada vez menos importa para a Bovespa se 200 milhões de brasileiros estão trabalhando, se alimentando, consumindo, sobrevivendo. O que interessa aos integrantes desse dito “mercado financeiro” é se o governo brasileiro está praticando um “ajuste fiscal” por eles considerado adequado nas contas públicas, assegurando a rolagem das dívidas das quais são os credores. É se as autoridades monetárias estão praticando taxas de juros “compatíveis” com as expectativas de inflação; as primeiras, influenciando a remuneração dos seus títulos; a última, determinando a preservação do valor real dos seus créditos a receber. É se as empresas com ações na bolsa estão obtendo lucros fantásticos que permitam a distribuição de fartos dividendos para os seus acionistas como tem feito, por exemplo, a Petrobras, tributando pesadamente toda a sociedade brasileira através da dolarização de preços básicos como os dos combustíveis e o do gás de cozinha.

Em suma, para a Bovespa, o que importa é garantir o fluxo de excedentes monetários necessários para dar continuidade à parte que lhe cabe na jogatina dessa rede global de bolsas de valores. É daí que vem os seus ganhos, muito mais do que da contratação de trabalho, da produção e da venda de bens e serviços.

Assim, a Bovespa não vem batendo recordes porque o Brasil “real” está bem. Ao contrário, os bate justamente porque esse Brasil está mais escorchado do que nunca. Para os “investidores”, a demolição do Estado brasileiro e o empobrecimento generalizado do seu povo têm criado possibilidades de negócios muitos lucrativos. Nesse sentido, o Brasil “real” atrapalha, pois cria situações, demandas e gastos imprevistos e, as vezes, politicamente incontornáveis. No limite, não lhes importa o quanto mais se agravará ou por quanto tempo ainda perdurará a crise social que assola o país, pelo menos até o ponto em que ela ameace projetar o país no caos. O que importa é se o Brasil continuará subordinado à sua agenda, doa a quem doer.

Não obstante, não é admissível que se perpetue tal subversão de valores em que os interesses das finanças sejam representados pelos meios de comunicação como coincidentes com os do Brasil, enquanto dezenas de milhões de brasileiros desejam e precisam trabalhar, mas não conseguem, ou se veem obrigados a aceitar trabalhos cada vez mais “uberizados”. Essa subordinação do Brasil “real” à Bovespa tem que acabar. Revalorizar o direito ao trabalho, o próprio trabalho e os investimentos produtivos como atividades centrais para a estruturação da sociedade e dos indivíduos, devolvendo as finanças ao seu “devido lugar” – isto é, o de facilitador daquelas atividades -, é uma questão crucial que terá que ser enfrentada por quem quer que deseje impedir a continuidade da degradação do país, sabe-se lá até que ponto e com quais consequências.

Por: Daniel S. Kosinski.
Doutor em Economia Política Internacional (IE-UFRJ) e diretor do Instituto da Brasilidade.

  1. Eu concordo que é importante considerar o impacto da economia financeira sobre a sociedade e o bem-estar dos indivíduos, e que é necessário encontrar um equilíbrio entre o crescimento econômico e a justiça social.

    Embora possa haver alguma verdade na preocupação de que a Bovespa não esteja necessariamente refletindo a realidade econômica do Brasil, é importante notar que a Bolsa de Valores é um mercado financeiro e, portanto, está sujeita às mesmas flutuações e incertezas que qualquer outro mercado financeiro. A Bolsa de Valores não é a única medida da economia de um país e há outros indicadores, como o Produto Interno Bruto (PIB), o desemprego, a inflação, entre outros, que precisam ser considerados para avaliar a saúde econômica de um país.

    Além disso, a Bolsa de Valores pode ser vista como uma ferramenta importante para o crescimento econômico, pois proporciona uma plataforma para que as empresas possam captar recursos e investir em seu crescimento, e também oferece uma oportunidade para os investidores de todos os tipos aplicarem seus recursos em diversas ações e setores, ajudando a alavancar o crescimento econômico.

    Por fim, é importante lembrar que o crescimento econômico e a justiça social não precisam necessariamente ser mutuamente exclusivos, e existem maneiras de promover ambos. Por exemplo, a implementação de políticas fiscais progressivas, programas de transferência de renda e políticas de investimento em infraestrutura e educação podem ajudar a reduzir as desigualdades econômicas e sociais, ao mesmo tempo em que se promove o crescimento econômico.

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