Jurema e Nicinha: uma história de resistência

Jurema e Nicinha, da série Meu Amor: Seis Histórias de Amor Verdadeiro
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Por Lara Batista – “Meu Amor: Seis Histórias de Amor Verdadeiro”, foi produzido a partir do documentário “My Love, Don´t Cross That River”, traduzido como “Meu amor, não atravesse o rio”, que tem como diretor o coreano Jin Moyoung, e teve sua estreia global na Netflix, em 13 de abril de 2021. A minissérie conta com seis episódios, gravados ao longo de um ano, no qual seis casais de diferentes partes do mundo, compartilham suas histórias de amor. A série tem também como diretores Deepti Kakkar e Fahad Mustafa (Índia), Hikaru Toda (Japão), Chico Pereira (Espanha) e Elaine McMillion Sheldon (Estados Unidos) e Carolina Sá (Brasil).

O Brasil é representado no episódio 5 pelo casal formado por Jurema e Nicinha, duas mulheres negras que se relacionam há 43 anos e juntas criam seus filhos e netos na Rocinha, Rio de Janeiro, uma das maiores favelas do país, com cerca de cem mil habitantes.

O episódio apresenta os lados difíceis da vida de qualquer casal, pois são pessoas distintas e com perspectivas diferentes, mas que, apesar disso, decidiram permanecer juntos a partir do respeito e amor. Especificamente na cena em que, Nicinha leva Dona Jurema ao médico para tratar um problema na visão, é perceptível a diferença das condições físicas e de saúde das duas, uma vez que Dona Jurema se queixa regularmente de dores nos joelhos e Nicinha, como companheira fiel e escudeira, está sempre ao lado da amada, cuidando e protegendo, nas escadas e morros infinitos da comunidade.

Nota-se que o relacionamento dessas mulheres passou por um processo de amadurecimento individual e coletivo, de modo que é importante analisarmos a trama sob um olhar não romantizado e trazermos para o centro do debate as opressões sofridas por elas ao longo de suas vidas, enquanto mulheres negras, pobres e lésbicas.

De acordo como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), na publicação “Retrato das desigualdades de gênero e raça (2015)”, afirma que as mulheres negras se encontram nos piores postos de trabalho, recebendo os menores rendimentos, sofrendo com as relações informais de trabalho e ocupando as posições de menor prestígio na hierarquia profissional.

Dona Jurema, agora aposentada, relata que nasceu e se criou na Rocinha, tendo como profissão a prestação de serviços de empregada doméstica e babá. Realidade essa que se manifesta de forma similar para sua companheira, Nicinha, que continua desempenhando trabalhos domésticos como profissão. Batista e Mastrodi (2019), num artigo intitulado “O dever das cidades includentes em favor das mulheres negras”, evidenciam que, aqui no Brasil, permanece no pensamento social, a naturalização de um lugar para as mulheres negras e que esse lugar seria a moradia em periferias e favelas, com empregos de baixa qualificação.

A trama também nos permite uma reflexão quanto à pluralidade na constituição dos núcleos familiares, aqui representado por duas mulheres negras, seus filhos e netos, que construíram seu lar, a base de afetos, respeito, admiração e cuidado, no qual todos fazem parte e foram criados na Umbanda, religião de matriz africana, e que sofre com a intolerância religiosa.

Importante mencionar que Michelle, que chama carinhosamente Dona Jurema de “vó”, quebra barreiras ao conseguir ingressar no ensino superior, se manter no curso em meio às dificuldades e se formar. Podemos ver que, em meio a tantas amarras coloniais, a ocupação de espaços sociais por mulheres negras, no caso de Michelle, frequentar a universidade, é um ato político. Com certeza, os incentivos como ações afirmativas com recorte social e racial implementadas pela UFRJ desde 2001, a seguir pela UnB (2003) e de modo amplo com a decisão da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, foram fundamentais para mais inclusão das minorias nesses espaços.

Dona Jurema e Nicinha, contam sobre seu grande sonho de sair da Rocinha e ir morar no campo, longe do caos, em um local tranquilo, com bichos, arvores frutíferas e calmaria. Como narra a música “Vida Loka parte 2”, do grupo Racionais MC’s, “O cheiro é de pólvora, e eu prefiro rosas. E eu que, sempre quis um lugar, gramado e limpo, assim, verde como o mar”. A partir dos dados do IPEA, constatamos que poucas mulheres negras conseguem alcançar a aposentadoria e a possibilidade de descanso, porque nunca tiveram garantias sociais e trabalhistas, de modo que os sonhos delas não passam de sonhos, ou seja, são mais difíceis de serem concretizados do que os de mulheres de bairros abastados.

Embora exista uma encruzilhada de opressões que as atravessa diariamente, o sonho da casinha, vai tomando forma, com muito suor, mão na massa e pouco dinheiro. As opressões de classe, raça, gênero e sexualidade não impediram que essas mulheres resistissem, porque como disse Conceição Evaristo, “a gente combinamos de não morrer”. Não há dúvidas de que mulheres à margem resistem!

Sendo assim, por mais que seja uma história de amor, daquelas que com certeza não vemos nos filmes, em decorrência do racismo, da invisibilidade lésbica e sexismo, não podemos fechar os olhos e romantizar o enredo. Segundo Ribeiro (2019), “entretanto, ainda que seja admirável que pessoas consigam superar grandes obstáculos, naturalizar essas violências e usá-las como exemplo que justifiquem as estruturas desiguais é não só cruel, como também uma inversão de valores”.

Não podemos normalizar o fato de que as pessoas precisam pagar para ter acesso à moradia adequada, à educação e à saúde, por exemplo, porque a estrutura que reproduz a perversidade da opressão permanece viva, e tende a culpabilizar as pessoas quando não saem do espaço de subalternidade em que foram deixadas.

Portanto, devemos questionar constantemente as estruturas que moldaram a construção da sociedade e os padrões opressores estabelecidos até hoje, de forma a cobrar do Estado, que se diz democrático de direito, que todos tenham seus direitos humanos materializados, objetivando uma transformação social.

Por: Lara Miguel Batista.
Mestranda em Educação na linha de inclusão e diversidade sociocultural, pela Universidade de Taubaté. Integrante do grupo de pesquisa “Educação: desenvolvimento profissional, diversidade e metodologias”.

Referências:
– MASTRODI, J; BATISTA, W.M. O dever das cidades includentes em favor das mulheres negras. Revista de Direito da Cidade, vol.10, n.3, 2018, p.862-886.

– RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. 1º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça – 20 anos.