8 de março: A singularidade das mulheres

8 de março A singularidade das mulheres
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O 8 de março foi oficializado em 1975 pela Organização das Nações Unidas como o Dia Internacional da Mulher, a partir do resultado das reivindicações dos movimentos feministas desde meados do século XIX. Contudo, a data foi reconhecida pela luta das mulheres brancas por igualdade de direitos no mercado de trabalho e, mais recentemente, pelos protestos sobre liberdade reprodutiva. As questões envolvendo raça e classe não tinham, até ali, qualquer destaque.

A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, adotada pelo Brasil em 2015, declarou 17 objetivos a serem alcançados pelos Estados-Membros, dos quais o Objetivo n. 5, da Igualdade de Gênero, estabelece que é dever dos Estados promoverem ações para “acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda partes; eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas pública e privada, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos; garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomadas de decisão na vida política, econômica e pública” dentre outros pontos.

Com certeza, esse ODS trata das garantias fundamentais para libertação desse grupo, inferiorizado pela reprodução normal e natural do patriarcalismo, estrutura social que subordina as mulheres pelo fato de serem mulheres, entendidas como pessoas inferiores ou, pior, nem como pessoas, mas como propriedade de seus pais ou maridos.

Para além do ODS 5, importa considerar o ODS n. 10, que trata do Combate às desigualdades, pelo qual se evidencia a importância de compreender as dimensões da raça e da classe, sem as quais é impossível pensar em medidas eficientes de enfrentamento às desigualdades sociais.

Na formação do imaginário social, os protestos das mulheres brancas por igualdade eram universais, ou seja, representariam os interesses tanto de mulheres brancas quanto de mulheres negras, tanto mulheres ocidentais quanto mulheres orientais da mesma forma. Contudo, isso é um grave equívoco, porque as mulheres, embora universalmente inferiorizadas pela questão de gênero, não são um grupo homogêneo. Há diversidade entre as mulheres e entre as suas reivindicações, razão pela qual esta data precisa evidenciar o grito de libertação contra o sexismo e o patriarcalismo, sem dúvida, mas também contra o racismo e contra o capitalismo.

Não há liberdade ou igualdade disponíveis para mulheres, num ambiente machista, misógino ou patriarcal; não existe liberdade ou igualdade disponíveis para negros, num ambiente racista; não existe liberdade ou igualdade disponíveis para pobres, num ambiente cuja estrutura impõe exploração econômica e acumulação de riqueza.

De todo modo, não só os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, mas o Estado Democrático de Direito como um todo, carecem de efetividade. Nem o direito internacional, nem o direito interno enfrentam a estrutura social vigente, estrutura esta que causa as disparidades salariais, que mantém mulheres brancas e negras longe de funções executivas e intelectuais, que institucionaliza as violências físicas e verbais nas relações sociais. No Brasil, por exemplo, há leis antirracistas, mas não significa que o racismo deixou de se reproduzir, nem que tais leis sejam aplicadas.

A estrutura social silenciou a história de luta das mulheres negras livres no continente africano, e das escravizadas durante quase quatro séculos. Ainda há dificuldade de nossa sociedade reconhecer a especificidade das mulheres negras africanas, que se subdividem em diversos grupos culturais.

As mulheres negras sempre trabalharam, visto que enquanto escravizadas eram submetidas aos mesmos serviços dos homens, à exceção das poucas mulheres colocadas nos trabalhos domésticos. Após a abolição da escravidão, as mulheres negras continuaram exercendo funções domésticas, porém agora sob a condição de (sub)assalariadas. Estas eram as responsáveis pelo sustento familiar, já que os homens negros sequer tinham oportunidade de inclusão no mercado de trabalho.

A luta das mulheres negras era para acesso aos espaços públicos e privados como qualquer outra pessoa, mas também era para obter segurança aos seus pais, maridos e filhos, principais alvos das arbitrariedades policiais, como explicado tão bem na obra de Lélia Gonzalez.

Angela Davis e bell hooks, a partir da realidade das mulheres negras norte-americanas, afirmaram que esse grupo sempre resistiu e lutou contra o patriarcalismo e contra o racismo, pois os homens do próprio movimento negro não tinham pautas feministas.

Beatriz Nascimento afirmou que, enquanto mulher negra, acadêmica e mãe, sentia-se inadequada nos espaços porque não havia acolhimento, empatia e inclusão, afirmando que “quando eu comecei a mergulhar dentro de mim, como negra, foi justamente na escola que era um ambiente onde eu convivia com a agressão pura e simples, com o isolamento, com as interpretações errôneas, estúpidas das professoras, a ausência de pessoas da minha cor na sala de aula, a falta de referência”. A autora narra que na infância era nomeada de Joãozinho porque tinha cabelos crespos e curtos, e que para sobreviver a essa e outras perversidades assumia o dever do perfeccionismo, tanto que era uma aluna comportada, com nota máxima em todos os trabalhos e agia com excessiva cordialidade para ser aceita. Mas notou que isso era também reflexo no racismo e sexismo, e que isso não a impedia de passar por traumas e violências.

“A fantasia de ser perfeita/o responde à ansiedade de que um desastre racista possa ocorrer novamente a qualquer momento” (KILOMBA, 2019, p. 233). Então, o perfeccionismo do sujeito negro aprisiona e garante o domínio do sujeito branco.

Homens brancos não precisam pensar sobre sua condição social, pois são como o arquétipo universal do ser humano. Se qualquer pessoa pensar na forma de Adão, é quase certo que pensará num homem branco. Assim como é comum que se pense em Jesus como alguém loiro e de olhos azuis. Mulheres brancas não precisam agir com tanta cautela e nem possuem as mesmas preocupações das mulheres negras, visto que seus estereótipos de beleza são aceitáveis e sua educação não impõe a obrigatoriedade de transmitir mensagens de sobrevivência como “não esqueça o documento; se a polícia te parar, levante os braços e não se mexa etc.”.

As pautas sobre a poligamia também são motivo de profundos debates em sociedades em que esses relacionamentos são legalizados, e isso jamais foi debatido pelas sufragistas. No livro Niketche: uma história de poligamia, Paulina Chiziane conta a história de mulheres moçambicanas que sofrem a solidão pela ausência de seus maridos que constituem novas esposas: “Olho para todas elas. Mulheres cansadas, usadas. Mulheres belas, mulheres feias. Mulheres novas, mulheres velhas. Mulheres vencidas na batalha do amor. Vivas por fora e mortas por dentro, eternas habitantes das trevas. Mas porque se foram embora os nossos maridos, por que nos abandonam depois de muitos anos de convivência? Por que nos largam como trouxas, como fardos, para perseguir novas primaveras e novas paixões? Por que é que, já na velhice, criam novos apetites? Quem disse aos homens velhos que as mulheres maduras não precisam de carinho? Oh, meu Tony! Queria tanto que estivesses presente. Ninguém pode entender os homens. Como é que o Tony me despreza assim, se não tenho nada de errado em mim?”(CHIZIANE, 2004).

Cabe reflexão sobre as diversas pautas das mulheres brancas e mulheres negras em favor do feminismo, que se impõe na luta contra o sexismo. Não se trata de uma pauta anti-homem, e nem apenas por direitos, mas de reconhecimento da desigualdade de gênero (e também de desigualdade racial), e assumir posição contra a estrutura que naturaliza e normaliza o sexismo e o racismo.

As demandas das mulheres, brancas e negras, pela libertação devem se constituir a partir da singularidade de cada sociedade, e sempre na luta contra a exploração do indivíduo pelo indivíduo.

Referências bibliográficas:

– CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

– KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.