Ideias para a reforma política do Brasil ( I ) – Financiando a democracia

Ideias para a reforma politica do Brasil Financiando a democracia
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Por Samuelson Xavier

A essência do movimento de reformas

Todas as reformas são políticas, mas há uma que se intitula política por excelência. É a reforma que todos defendem a necessidade e dificilmente alguém concorda na forma. A reforma política não é a reforma de toda a política com P maiúsculo, é a reforma dos detalhes do modelo político, mas na política como na barganha faustiana “o diabo mora nos detalhes”. Entre a Grande Política e a Pequena Política, só a segunda é constituída objetivamente por reformas particulares e procedimentais. Da mesma forma que nenhuma grande construção arquitetônica se projeta para a realidade concreta sem a resolução dos pequenos problemas de engenharia, a reconstrução do Estado que é a espinha dorsal da reforma social profunda não é exequível sem o desenho de uma reforma política necessária à sustentação de projetos nacionais e movimentos políticos de longo prazo. É a reforma política a política por excelência porque é modeladora dos fundamentos da prática política. Vargas refletia através da sua experiência histórica: “Cumpre não confundir revolução com o episódio militar que a deflagra. Revolução é adaptação à realidade, compreensão segura dos fenômenos sociais, reconstrução do edifício do Estado sobre fundamentos sólidos.”. Uma reconstrução do edifício do Estado, portanto uma Reforma do Estado, é o processo mais amplo que nenhuma força política é capaz de pôr em execução sem uma transformação procedimental dos meios legais e institucionalizados da organização política. Por força disso, em qualquer programa reformista, o tema da Reforma Política deve ocupar um espaço central, o espaço do primeiro capítulo entre as reformas capitais. Tratemos da parte do desenho institucional da “pequena política” que é a essência do movimento de reformas a partir dos eixos propostos por Ciro Gomes.

Os eixos da proposta de reforma política do candidato Ciro Gomes no “Projeto Nacional: Dever da Esperança”

Ciro propôs 7 eixos de reforma política junto à revogação da reeleição para presidentes da república no livro de 2020 e à implementação dos instrumentos da democracia direta no mandato: 1- Financiamento Público e de Pessoa Física. 2- Voto Distrital Misto 3- Fidelidade Partidária 4- Revogação Popular dos Mandatos 5- Eleição em três turnos 6- Diminuição gradual de cadeiras 7- Adoção de urnas eletrônicas de terceira geração. Além dos compromissos já citados de: A) fim da reeleição do presidente da república B) implementação dos instrumentos da democracia direta no mandato. Vamos refletir propositivamente no presente texto sobre o primeiro tópico guardando os seguintes tópicos para uma próxima escrita.

O primeiro desafio do programa trabalhista

Podemos encontrar os programas das candidaturas nos arquivos da Folha Online, lá está no programa de Ciro Gomes, de 2002, uma parte chamada “Reforma da Política: aprofundamento da democracia”. Elaborado sobre três eixos, o programa propunha: (1) Introduzir dentro da democracia representativa elementos cada vez mais fortes de democracia participativa e direta; (2) Financiamento público das campanhas eleitorais; (3) Construção de regime de partidos políticos fortes. A essência da proposta de Ciro, em 2002, era completar o sistema político brasileiro com um componente parlamentarista e plebiscitário, sem com isso necessariamente provocar a mudança do sistema de governo. Uma ideia fecunda e moderna para o aperfeiçoamento democrático. O primeiro e o segundo eixos eram diretrizes, o segundo trata-se de um tema fundamental para a concretização dos outros dois. A reforma política de Michel Temer, realizou muito parcialmente o problema da criação do financiamento público, por outro ângulo criando outro problema, pois instaurou a desconfiança na população sobre o financiamento e centralizou exacerbadamente os recursos aprofundando desigualdades. A reforma de Temer foi um avanço, mas avanço capenga que não resolve a questão central da infraestrutura da democracia. O primeiro grande desafio do programa trabalhista para a construção da verdadeira democracia participativa de partidos fortes é o aperfeiçoamento do mecanismo público de financiamento.

A regulamentação adequada do financiamento comum para a democracia representativa e a insurgência de um financiamento participativo para o aprofundamento da democracia

O financiamento público foi imaginado como solução para as distorções corruptoras que o financiamento privado introduz na democracia representativa, mas sua aplicação sem uma regulamentação criteriosa gera o contexto perfeito à crítica oportunista dos grupos interessados no financiamento privado, à desconfiança popular sobre a administração dos recursos e a concentração de recursos por grupos políticos privilegiados que fragilizam a democracia interna dos partidos. O financiamento deixa de ser ferramenta corrompida de uma classe empresarial e torna-se então ferramenta corrompida de uma oligarquia política que parasita partidos populares. É preciso corrigir logo a distorção consequente à precária regulamentação do financiamento, ou, aquela crítica oportunista mencionada irá acabar por promover um retrocesso ao sistema privado de financiamento. Temer promoveu uma minirreforma no sentido de adequar o sistema político ao financiamento comum da democracia representativa: 1) O fim das coligações proporcionais 2) A cláusula de desempenho 3) A extinção do financiamento por doações de pessoas jurídicas (realizada por decisão do STF e verdadeira causa da minirreforma). A minirreforma de Temer veio no sentido de estimular fusões e incorporações de uns partidos por outros, enxugando o sistema partidário. Em 2021, a Lei de Federações Partidárias veio para mitigar os efeitos desejados de redução do número de partidos. Como resultado até o momento, temos 32 partidos, 3 federações partidárias; e vamos esperar ansiosamente para ver o resultado da minirreforma na conformação do sistema partidário. Ao que tudo indica, o mecanismo é falho justamente por eleger como único critério relevante para a destinação de recursos a representação dos partidos no congresso. Precisamos, proponho, de três aprimoramentos centrais na proposta do fundo público eleitoral e partidário para alcançar a legitimação popular:

a) A transparência radical de contas partidárias

Diversos países que debateram e implementaram o financiamento público viram o sistema passar por crises de legitimidade. Em alguns países, o financiamento público foi radicalmente reduzido ou quase extinto. A razão é a pressão de partidos conservadores historicamente ligados às camadas oligarquizadas da sociedade (bancos, imobiliárias, indústria de armas…) contra o financiamento público e em aliança com a mídia sensacionalista cooptada pelos mesmos agentes econômicos que financiam os parlamentares da “democracia privada”. Usam como primeiro argumento a falta de transparência no uso do recurso como indicador de corrupção. Não há solução para a crise de legitimidade dos partidos sem transparência e publicidade. Devemos propor um sistema digital de transparência radical das contas partidárias. Todo partido beneficiário de um tostão que fosse do financiamento público passaria a estar obrigado a uma política de “paredes de vidro”. Ou seja, todas suas contas passam a estar abertas à população para o monitoramento, escrutínio e auditoria do uso dos recursos. Não ganharemos a confiança do povo sem uma transparência radical das contas partidárias, só a mais clara demonstração de verdade e boa fé pode promover a vontade popular.

b) A distribuição justa como ação afirmativa e integração nacional

A primeira grave distorção da representação política é social, é a que levou a maioria feminina e negra a uma minorizacão no congresso, minorização que está sendo conservada pela desigualdade do financiamento privado e só poderá ser superada pela distribuição justa do financiamento público. A maioria feminina e negra faz parte de uma população que só conquistou direitos políticos no último século, mas é principalmente no financiamento que ainda subsiste a segregação política que minoriza as maiorias brasileiras. A segunda grave distorção da representação política é regional, é a que isola as cidades de fronteira ou de baixa densidade populacional, distantes das regiões metropolitanas. As lideranças de regiões que não pertencem aos grandes centros de cada estado continuamente se vêem desprezadas na destinação de recursos e é este abandono dos projetos políticos das pequenas e distantes comunidades do Brasil que é uma brecha para a fragilização da nossa unidade territorial, cultural e política. A terceira grave distorção da representação política é etária, é a senilização da política que afasta as novas gerações garantindo uma ordem gerontocrática de acumuladores de privilégios que apenas transmitem o poder aos seus herdeiros. O fundo público sem uma regulamentação que deixe expressa a discriminação positiva e a garantia de financiamento público às maiorias minorizadas do país, às populações afastadas dos centros econômicos e aos jovens torna-se um instrumento conservador cooptado pelas cúpulas das burocracias partidárias com fim que é apenas o aumento da rejeição popular ao sistema de financiamento público. A política de cotas ou os mínimos sobre o financiamento público e a descrição nos estatutos partidários das normas detalhadas de distribuição de recursos nos critérios enumerados acima são fatores de integração nacional e reparação histórica que adequam as condições para a democracia no Brasil.

c) A participação popular na destinação dos recursos

Atualmente, o fundo está previsto primeiro para ser distribuído com igualdade, embora em menor monta, entre todos partidos que cumpram os critérios da cláusula de desempenho. Depois, está previsto para ser distribuído de acordo com o número de parlamentares federais que cada um desses partidos atingiu no último pleito. Um critério que leva em conta o passado para definir o futuro e vicia o sistema partidário e as eleições em uma lógica profundamente conservadora. Não dá alternativa de movimentos e agremiações menores destacarem-se renovando o cenário nem da decadência de velhos movimentos sepultarem agremiações políticas obsoletas. Acima de tudo, introduz uma obrigação geral de financiamento dos partidos sem garantir a ninguém o direito de participação intencional sobre o recurso destinado na estruturação deste instituto oneroso que é a nossa democracia. É a redução do cidadão a objeto “contribuinte” no lugar da sua elevação a sujeito “doador” de sentido do processo político. O sufrágio universal é uma instância participativa da representação política, podemos dizer que uma instância aparente, pois a instância essencial da representação política é a participação intencional do cidadão na estruturação financeira-material do movimento político, a conversão da passividade à militância. A atual participação não-intencional como obrigação de contribuir é extremamente impopular e vai apenas crescer em rejeição. Vamos imaginar juntos uma outra proposta complementar a seguir.

Digamos que cada pessoa apta a votar tenha 50 reais por ano para beneficiar um partido de sua predileção. Claro, se um eleitor não beneficiar nenhum partido ou se um partido não chegar a 1% de benefícios, o valor será distribuído conforme o critério comum descrito no parágrafo anterior. Pensemos tudo como um ato simultâneo à declaração digital do imposto de renda. A ideia de um benefício ou contribuição aos partidos foi popularizada no livro “Capital e Ideologia” de Thomas Piketty. A ideia original é da economista Julia Cagé, a proposta está exposta na grande obra que realizou sobre o problema do financiamento das democracias capitalistas no livro “Le prix de la démocratie”, certamente a maior pesquisa já desenvolvida sobre o tema. O “système des Bons pour l’égalité démocratique”, que prefiro traduzir por “sistema de benefícios pela igualdade democrática” no lugar de “sistema de bônus pela igualdade democrática”, é o avanço verdadeiro no sentido do aprofundamento da nossa democracia. A proposta evita que partidos sem intenções eleitorais recolham recursos e que partidos obsoletos sobrevivam por mera inércia do financiamento público que tende a engordar os partidos que já estão pesados. Implica na transformação do fundo público comum no fundo público participativo. Os partidos teriam que fazer campanha por seus programas políticos e disputar o benefício do eleitor para estruturar suas campanhas. Poderíamos implementar a política do fundo participativo em 30% ou 40% do recurso e testar. Dar às pessoas o direito de escolher para onde irá seu dinheiro e envolver os partidos no processo de captação dos próprios recursos através de campanhas programáticas serviria à educação política da população e de passo para a democratização interna dos partidos. Creio que essa é definitivamente a melhor ideia a respeito do financiamento público que conheço. Vamos construir a legitimidade do financiamento da democracia envolvendo o povo no processo? É uma utopia inteiramente possível e está na nossa mão democratizar o financiamento público para aprofundar a democracia. O Benefício pela Igualdade Democrática (BED) seria o complemento ao sufrágio universal, um segundo voto, um voto financeiro. O eleitor não apenas poderá distribuir cargos como faz no voto, mas poderá distribuir recursos, e assim levantar partidos do chão ou enterrar velharias políticas. É a soberania popular penetrando na infraestrutura da política. A participação popular na destinação dos recursos é o avanço necessário ao sistema brasileiro. Espero que o trabalhismo acolha e aprimore a proposta que esbocei aqui para um financiamento participativo, transparente e justo.

Por Samuelson Xavier

 

Algumas referências

Vargas, Getúlio. Manifesto à Nação. Lido em junho de 1934.

Gomes, Ciro. Projeto Nacional: Dever da Esperança. Editora Leya. 2020.

Piketty, Thomas. Capital e Ideologia. Intrínseca. 2020.

Cagé, Julia. Le Prix de la démocratie. Fayard. 2018.