Realismo fantástico: O STF de hoje e a CCC de ontem

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O que diriam Arturo Uslar Pietri (Venezuela), Isabel Allende (Peru/Chile), José J. Veiga (Brasil), Jorge Luis Borges (Argentina) e Gabriel García Márquez Márquez (Colômbia) acerca dos recentes fatos ocorridos em “Nuesta Gran América Latina”?

Os referidos autores desenvolveram o chamado “Realismo Fantástico”, escola literária do século XX que serviu de expressão artística para uma reação, através da palavra, contra regimes ditatoriais latino-americanos. Tal estilo possuía como uma das suas características marcantes a narrativa de “fatos fantásticos” percebidos como parte da “normalidade” pelos personagens, bem como a distorção do elemento temporal para que o “presente” continuasse a se repetir ou viesse a parecer com o “passado”, nos trazendo uma percepção cíclica do tempo, ao invés de linear, dissociada da tradição racional moderna.

A cena tão chocante quanto “fantástica” vista na noite de 13 de junho de 2020, em Brasília, na qual apoiadores de Bolsonaro atentaram contra o Palácio do Supremo Tribunal Federal (STF) com o lançamento de fogos de artifício em sua direção, ocorreu em resposta do grupo “300 pelo Brasil” à atuação do governo do Distrito Federal que desmontou o então acampamento irregular para evitar aglomerações em meio à pandemia do novo coronavírus.

Realismo fantástico O STF de hoje e a CCC de ontem

Tal fato funcionou para mim, um pesquisador de direito constitucional comparado e do papel das Cortes Constitucionais, como uma espécie de “Déjà vu” macabro daquilo que ficou marcado na história do povo colombiano como o “Holocausto Institucional”.

Em 6 de novembro de 1985, o grupo guerrilheiro M-19 (Movimento 19 de Abril, em referência a uma suposta fraude nas eleições presidenciais de 1970) invadiu o Palácio da Justiça, sede da Corte Constitucional da Colômbia (CCC), o equivalente ao Supremo Tribunal Federal (STF) no Brasil, no centro de Bogotá, capital do país, a metros do Congresso e da residência oficial do presidente da República. Na oportunidade, após a tomada do palácio pelos guerrilheiros, o presidente da República Belisario Betancur, que estava em meio a reuniões com embaixadores estrangeiros na sede do Executivo, recebeu a notícia de que as Forças Militares invadiram o local, no qual estavam mais de 300 pessoas, entre magistrados, funcionários, visitantes e guerrilheiros.

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Os confrontos que se seguiram à ofensiva das Forças Armadas pelo controle do Palácio resultaram na morte de cerca de 100 pessoas, dentre elas magistrados, incluindo o presidente da Suprema Corte, além de 11 pessoas desaparecidas.

Algumas fontes relatam que o presidente da Suprema Corte da Colômbia, Alfonso Reyes Echandía, teria entrado em contato com o então presidente da Colômbia, Belisario Betancur, com o intuito de obter um cessar-fogo e mediar as negociações. Betancur, no entanto, não teria atendido à chamada e teria ordenado a ofensiva das Forças Armadas.

A tomada do Palácio pelos Militares se tornou um grande trauma nacional na Colômbia, que encara o episódio de modo semelhante a como os EUA veem o atentado às Torres Gêmeas no ano de 2001.

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A Comissão da Verdade colombiana, que publicou em 2009 seu relatório sobre o caso, entendeu que o governo nunca teve a intenção de salvar a vida dos reféns. O documento oficial relatou, inclusive, que o governo censurou informações sobre o que estava ocorrendo, ordenando a partir do Ministério das Comunicações “a transmissão de um jogo de futebol (na TV) enquanto o palácio era consumido pelas chamas”.

Os “fatos fantásticos” e os personagens assemelhados observados aqui, no Brasil, e lá, na Colômbia, bem que poderiam fazer parte de um romance inédito de um literário latino-americano, mas, quando a realidade copia a ficção, e não o contrário, o já gasto roteiro de que “as instituições seguem funcionando” pode representar o epitáfio da democracia ou mesmo o réquiem institucional brasileiro. 1985 pode estar bem ali, a um passar de capítulos.

Por Rafael Bezerra, Mestre em Teorias Jurídicas Contemporâneas – UFRJ, assessor parlamentar – Câmara dos Deputados, e autor da obra “Direitos para além da sala do tribunal: um estudo de caso comparado entre Brasil e Colômbia” (Lumen Juris, 2016).