Putin, Dugin e o chauvinismo russo: uma paródia da tradição

Putin Dugin e o chauvinismo russo uma parodia da tradicao
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Existe um conjunto de ironias e contradições na tentativa de Putin de negar a existência de uma identidade ucraniana independente da russa. Neste sentido, ele é até mais radical do que alguns teóricos saudosistas da Rússia oitocentista, como é o caso de Alexander Dugin, que admite a existência deste pertencimento nacional, ainda que o considere “ridículo”.

A primeira ironia é que o nacionalismo ucraniano se torna identificável como movimento ideológico em um período próximo ao do próprio nacionalismo russo e ligado umbilicalmente a este último. Foi a Rússia Imperial que, em suas disputas territoriais com o Império Austríaco e o Império Turco, incentivou, direta e indiretamente, o fortalecimento de uma identidade nacional nas populações ucranianas. Algumas instituições culturais, como a Universidade de Kiev, eram portadoras dessa mensagem e difundiram essa noção de pertencimento.

À época, o Czarismo criava seu próprio nacionalismo, que englobava todos os eslavo-orientais: a Nação Russa tri-una, formada pelos Grão-Russos [a etnia russa propriamente dita], a Rússia Branca [bielo-russos] e a Pequena Rússia [ucranianos]. Ao perceber que o nacionalismo ucraniano caminhava para longe deste esquema, Moscou mudou de posição e passou a proibi-lo, tentando substituí-lo por sua forma particular de ideologia Pan-Russa.

Como consequência, os agentes e teóricos do nacionalismo ucraniano migraram e se fortaleceram entre as populações ucranianas fora do território russo, mais especificamente, aquelas que se encontravam na Ucrânia extremo-ocidental, no interior do Império Austríaco. Os Habsburgo seguiam uma política interna diferente para lidar com as etnias, incentivando as nacionalidades menores como contrapeso àquelas maiores. A situação era diferença no Império Czarista, cuja maioria étnica grão-russa permitia a hegemonia desta etnia sobre as demais no território.

Dugin defende, no terreno da propaganda política, a ressureição do Império Russo, mas o irônico é que a versão de Império Multinacional esposada pelos austríacos era muito mais próxima das teses dos livros do próprio Dugin do que o Império Russo. E é irônico que as diferenças entre as duas construções tenham possibilitado a emergência de uma identidade nacional ucraniana com acento polaco-lituano – que depois se espraiaria do oeste para o leste do território da Ucrânia.

Putin costuma responsabilizar as políticas leninistas pelo afastamento entre Ucrânia e Rússia, ou antes, pela gestação de um “Estado Artificial” [sic] na Ucrânia. De fato, Lênin concebia a União Soviética como uma “Federação de Nações” unidas pelo Socialismo. Nela, a Rússia não teria, em princípio, nenhum status de superioridade frente as demais Repúblicas (isso seria o chauvinismo grão-russo a ser combatido). Era um curioso equilíbrio entre nacionalismo e internacionalismo, prevendo novas adesões ao Estado bolchevique na medida em que a revolução conquistasse outras nações e ganhasse o mundo. E era também um meio de Lênin se contrapor à ideologia nacionalista pan-Russa [tri-una] do Czarismo do século XIX.

Mas o fato é que a identidade nacional ucraniana, com acento polonês e lituano, se desenvolveu em Viena também por causa decisões políticas da própria Rússia Imperial e de seu nacionalismo específico. Dugin pode considerar esta identidade “ridícula”, mas ela nasce organicamente em uma dialética com a própria identidade grão-russa.

As contradições russas não terminam por aí, e se estendem também àqueles cristãos ortodoxos que creem estar defendendo a “Santa Tradição” ao aderirem ao discurso de negação da nacionalidade ucraniana como independente da russa. E isso inclui Dugin e muitos duginistas, como também o uso estapafúrdio que Putin tem feito da religião como fator de legitimação de suas pretensões imperialistas.

É que tanto o nacionalismo russo quanto a Rússia Imperial do século XIX são frutos de esforços modernizantes — leia-se, europeizantes e ocidentalizantes — que remontam ao Reinado de Pedro I (admirado por Putin). Longe de defender a Santa Tradição Ortodoxa, se abraçam a um status quo que representava uma ruptura com a doutrina de Sinfonia do Poderes e com o sentido mais profundo da Santa Rus’, dominante dos séculos XV ao XVII. Foi Pedro I quem assumiu o título de Imperador — descartando e relativizando intencionalmente o de Czar, que tem um significado distinto e explicitamente religioso — e passou a chamar a Moscóvia de Império Russo. Seu objetivo era imitar o Despotismo Iluminista Ocidental. Foi ele também que acabou com o Patriarcado de Moscou e impôs limites severos à atuação da Igreja e dos Mosteiros.

Pedro I e seus sucessores eram tão fanáticos pela modernização que impuseram à Nobreza vestimentas similares a das dinastias europeias. Como bem disse Lorena Miranda Cutlak: “Após viajar pela Europa e se aconselhar com suas figuras mais eminentes, [Pedro I] construiu São Petersburgo como “uma janela para o Ocidente”, uma cidade planejada, moderna e racional, oposta à antiquada e caótica Moscou, e mandou cortar as barbas aos nobres, que agora deviam trajar-se à europeia, entre inúmeras outras medidas no mesmo sentido, abrindo o país para o influxo desde então incontido de cultura ocidental. O resultado imediato das reformas petrinas foi a criação de uma elite europeizada, cujos costumes passaram a contrastar fortemente com aqueles que caracterizavam a massa da população, composta por servos camponeses. Em médio prazo – isto é, em meados do século XIX –, tal cisão cultural era a manifestação concreta da crise de identidade da qual padecia todo e qualquer intelectual russo de então; quanto mais educados, quanto mais “europeizados”, mais urgentes pareciam a esses homens a questão nacional e a busca pela distinção do que seria o caráter russo.”

Evidente que o cisma provocado na Igreja Ortodoxa pelos nacionalistas ucranianos é abjeto para um cristão-ortodoxo, mas não pelos motivos brandidos por Putin, a saber, não pela suposta inexistência da Ucrânia; muito menos pelas motivações de Dugin, que na ânsia de defender a Tradição, se apega a um modelo imperial e nacionalista que nasceu de braços dados com o Iluminismo, e que é uma das influências mais óbvias e determinantes do Ocidente, primeiro na elite política, depois em toda a sociedade russa.

As contradições e ironias no discurso atual da Rússia estão no terreno nefasto da paródia. É uma paródia de Tradição, manipulada com objetivos políticos. É tradicionalismo no pior sentido do termo, tal como o concebia René Guénon, o de “falsificação de todas as coisas”, ou ainda: “Todo aquele que afirma ser ‘tradicionalista’ normalmente afirma ser ‘antimoderno’, mas pode ser que, sem percebê-lo, seja ele próprio afetado pelas ideias modernas sob uma forma que, embora mais atenuada (e por isso mesmo mais difícil de discernir), corresponde mesmo assim a uma ou outra etapa percorrida por essas ideias no decurso de seu desenvolvimento”.

Por André Luiz Dos Reis

Publicado pela Frente Sol da Pátria

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