A portaria 2227 que restringe a participação de pesquisadores em eventos

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Neste texto queremos pontuar alguns elementos que exemplificam a perseguição do Governo Bolsonaro à Universidade, impondo restrições à vida acadêmica que, se levadas a cabo, em pouco tempo perderemos boa parte do avanço que construímos nos últimos 30 anos. Queremos falar, especialmente, da portaria 2227, publicada ao final de dezembro, que estabelece o controle da participação de docentes em eventos nacionais e internacionais: “no máximo, dois representantes para eventos no país e um representante para eventos no exterior, por unidade, órgão singular ou entidade vinculada”.

Nas últimas duas décadas é crescente a pressão para a internacionalização da universidade no Brasil e na América Latina (AL). É crescente a pressão para a realização de pesquisas em rede na pós-graduação com instituições nacionais e internacionais. É crescente a pressão pela publicação em coautorias com pesquisadores internacionais e de outras instituições. É crescente a pressão pela produção a partir de grupos de pesquisa e não mais produções individuais, do pesquisador solitário no seu gabinete. É crescente a pressão pela publicação em inglês em periódicos nacionais e internacionais. Vejam que a pressão cresce em ritmo totalmente inverso ao investimento do poder público, que só diminui após um ciclo de investimentos reconhecido pela comunidade acadêmica entre os anos de 2003 e 2014, materializado na expansão da universidade, com a criação de novos campi e de novas instituições. Basta lembrar os cortes drásticos no orçamento da universidade no primeiro ano do Governo Bolsonaro, que gerou os protestos de maio.

É consenso que a criação de redes de cooperação internacional em pesquisa seria a parte mais importante do chamado processo de internacionalização, o que implica na troca efetiva com parceiros internacionais. À parte toda a discussão crítica que precisa ser feita em relação a essa internacionalização, não se pode negar a importância da construção de parcerias no trabalho acadêmico. E como se constroem essas parcerias? Elas não caem do céu, não ocorrem de forma aleatória, obviamente. Exige um esforço grande de investimento não apenas financeiro, mas, sobretudo, de energia e disposição para lidar com as diferenças entre as culturas acadêmicas das instituições envolvidas, as diferenças linguísticas, epistemológicas, dentre outras. Posso afirmar que as assimetrias são muitas. Vou contar um pouco da minha experiência de duas décadas trabalhando com pesquisa e buscando interlocução fora do país.

Todas as parcerias que já construí até o momento tiveram como pontapé inicial a participação em eventos. Foi assim que construí minha ida aos Estados Unidos, em 2002, quando estudante de doutorado, participando num evento na UCSB (University California Santa Barbara), onde conheci Judith Green, supervisora do meu doutorado “sanduiche”. Foi assim que conheci Lesley Bartlett, da Universidade de Wisconsin, num evento na Inglaterra, em 2009, parceria de trabalho. Foi assim que vim a Londres em 2009, quando conheci Brian Street (in memoriam), num evento realizado em 2007 na UFMG em parceria com a UFSJ. E foi assim que pela terceira vez busco novas parcerias, na Goldsmiths, com o professor Francisco Carballo e na UFSCAR-Sorocaba, com o professor Paulo Lima. Creio que esta experiência não é muito diferente da dos meus colegas.

Isso só foi e está sendo possível, até o momento, pelo investimento do poder público no meu trabalho de pesquisadora, financiando os projetos, a minha participação em eventos e custeando todo o período no exterior e na própria UFSCAR. Obviamente os eventos em si não produzem parcerias, mas permitem o encontro (sem entrar no mérito da forma como os eventos têm sido organizados e que precisa ser questionado).

Além disso, os eventos não existem apenas para se firmar parcerias. São importantes porque a produção do conhecimento cientifico é um empreendimento coletivo, não se produz no isolamento. É por meio dos eventos que conhecemos o campo acadêmico no qual atuamos, é por meio dos eventos que acompanhamos os resultados de pesquisas em primeira mão, como ocorre com nosso GT Alfabetização, Leitura e Escrita da ANPED. Nos eventos e fóruns nos inteiramos dos consensos e dissensos do campo científico, estreitamos parcerias nacionais, conhecemos novos pesquisadores. Nos eventos reconhecemos os limites de nossas pesquisas, quando as observamos em contraste com outras. Nos eventos percebemos que apenas a leitura de artigos, livros e textos acadêmicos não é suficiente para a produção da ciência. Precisamos da interação face-a-face que permite o debate de ideias.

Pois bem, é justamente esse aspecto tão importante da vida acadêmica (dentre vários outros que não cabe relatar aqui) que está sendo frontalmente atacado pela referida portaria. O MEC está minando um dos nascedouros do processo científico, afetando o diálogo inerente à produção do conhecimento, o diálogo com o diferente, e não apenas aquele diálogo endógeno que já ocorre no interior de cada universidade com nossos colegas. Imaginem a médio prazo o impacto que essa medida terá na socialização e na própria produção do conhecimento cientifico produzido no Brasil. Ou seja, na lógica do governo, não basta cortar investimentos, é preciso atingir o cerne do processo mesmo, isolando pesquisadores, matando-os de inanição. É nos eventos que os encontros acadêmicos entre os diferentes e entre os iguais podem ocorrer mais facilmente. Mas o ministro não tem ideia do que isso significa. Afinal, ele não tem carreira acadêmica nenhuma a prezar. Que contribuição ele deu até o momento para a produção do conhecimento cientifico? E nós, vamos continuar apenas atendendo aos editais do MEC e da CAPES, sem qualquer postura crítica, simplesmente porque a roda gira, as coisas são assim mesmo e não há nada a fazer? Penso que foi esta acomodação que nos levou à situação que aí está.

Concluo fazendo um chamamento para a resistência e a luta conversando não apenas entre nós, mas com a sociedade em geral que precisa ser alertada sobre o desmonte da universidade e da ciência. Precisamos do apoio de cada brasileiro nesta luta! Precisamos ampliar nossa interlocução e nossa linguagem. Fica a pergunta. Como construir uma linguagem nova para falar com a sociedade sobre os nossos problemas? A pesquisadora Magda Soares, da UFMG, já alertava para isso num texto do livro Para quem pesquisamos, Para quem escrevemos: o impasse dos intelectuais organizado por Regina Leite Garcia. Texto primoroso cuja leitura recomendo.

Londres, 28 de janeiro de 2020

Por Maria do Socorro Alencar Nunes Macedo, pesquisadora do CNPQ, professora da Universidade Federal de São João del-rei Coordenadora do GPEALE e pesquisadora visitante na UFSCAR-Sorocaba e na Goldsmiths em Londres.