As duas interpretações sobre 2018 e os caminhos da oposição

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Quem tem acompanhado as movimentações políticas no cenário brasileiro percebe que a oposição ao governo Bolsonaro está dividida.

Essa divisão já existe desde o processo eleitoral de 2018 e vai se tornando cada vez mais evidente na medida em que o governo ensaia seus primeiros passos. A divisão da oposição na eleição para a presidência da Câmara, a formação de dois blocos opositores diferentes, as vaias dos petistas a Ciro Gomes na UNE, as constantes críticas de Ciro e do PDT ao PT e vários outros acontecimentos marcam um cenário de disputa aberta no campo da oposição.

Na verdade, o que está em jogo é muito mais do que saber quem vai ser a liderança e a voz da oposição e sim uma disputa sobre interpretações diferentes acerca da derrota de 2018. Essa é a verdadeira disputa na oposição e entender isso é fundamental para nos posicionarmos no cenário político atual, assim como para entendermos as ações de cada um dos grupos oposicionistas. Entender que há diferenças no modo de entender a oposição ao governo evita um julgamento precipitado dos seus atores, que incorre no erro de analisar as ações de grupos ou pessoas a partir da forma que pensamos e não a partir da forma como elas pensam.

A primeira interpretação se usa de dois elementos centrais para explicar o resultado eleitoral de 2018: a) perseguição judicial e o impedimento da candidatura de Lula e b) a avalanche de notícias falsas arquitetadas pela campanha de Bolsonaro. Essa interpretação nasce no núcleo político petista e é difundida massivamente pelos blogs alinhados, movimentos sociais que orbitam o PT e por partidos próximos, como o PSOL. Essa leitura sustenta que a prisão e o posterior impedimento da candidatura de Lula – que até então liderava as pesquisas – deturpou a vontade popular de um terceiro mandato de Lula, fazendo com que a perseguição judicial e midiática contra Lula abrisse o caminho para que Bolsonaro pudesse se consolidar como o líder da corrida presidencial.

O outro ponto determinante para a eleição de Bolsonaro teria sido a rede de mentiras que circulou no WhatsApp e que foram financiadas de maneira ilegal por grandes empresários interessados em ter um representante seu diretamente no Palácio do Planalto. A campanha de Bolsonaro teria enganado o povo com um ritmo incessante de notícias falsas, fazendo com que a rejeição ao PT disparasse de forma muito rápida, inviabilizando o crescimento de Haddad. Alguns setores de retórica mais radicalizada chegam a falar que as eleições foram fraudadas. Há um pressuposto implícito nessa interpretação que deve ser desnudado e é determinante para entendermos a atuação da oposição petista e psolista ao governo. Esse pressuposto é o de que não houve elemento racional para o voto em Bolsonaro, jogando toda a responsabilidade de sua eleição em cima da manipulação da vontade do eleitor, que teria eleito Lula mas elegeu Bolsonaro por conta da soma dos dois fatores destacados anteriormente. O lulismo ainda seria uma força política considerável na política brasileira, suficiente para bater de frente com o governo, tendo como consequência a saída pelo caminho da polarização na oposição ao governo.

A segunda interpretação segue por um caminho diferente e tem como seus principais defensores o PDT, o PCdoB e alguns outros partidos e lideranças alinhados. Essa interpretação não nega o papel desempenhado pela prisão e impedimento da candidatura de Lula, assim como não nega papel das notícias falsas no resultado eleitoral de 2018. Entretanto, ela acrescenta alguns elementos nessa equação.

Há outros pontos que foram fundamentais para a derrota e que vão além daqueles explicitados pela interpretação do PT. É possível os resumir em três, que são: a) o erro de estratégia do PT; b) o cansaço com o sistema político brasileiro e com a corrupção; c) o aumento da violência. O primeiro diz respeito à estratégia petista, que subestimou o antipetismo na sociedade e achou que ainda era maioria, apostando todas as suas fichas em uma comoção popular com a prisão injusta de Lula, o que não aconteceu, ao mesmo tempo que agiu para inviabilizar todas as candidaturas no campo da centro-esquerda/esquerda que poderiam ajudar a enfrentar Bolsonaro. O segundo é sobre como Bolsonaro de fato conseguiu se construir como um candidato antissistema no senso comum da sociedade, explorando um cansaço brasileiro com a corrupção e a política institucional. A imagem que ficou na cabeça do brasileiro médio foi a da disputa “Bolsonaro x sistema”, o que fez com que que qualquer ataque a ele vindo da mídia e dos partidos tradicionais (PT e PSDB) fosse interpretado como uma tentativa do sistema de evitar a mudança e a novidade. Por fim, o terceiro elemento é um grito de desespero do brasileiro, especialmente o pobre trabalhador, com a violência crescente que não foi contida pelos governos do PT. O sentimento de caos e a violência no Brasil impulsionou a construção de uma candidatura que fizesse o discurso do apelo à ordem e disciplina. Nota-se que essa interpretação coloca uma parcela importante da responsabilidade pelo resultado de 2018 no PT. Erros cometidos quando estavam no governo e que foram se agravando mesmo quando o partido estava na oposição. O diferencial dessa interpretação para primeira é que ela identifica elementos racionais que levaram o eleitor votar em Bolsonaro. A partir daí, como consequência, o comportamento da oposição que adere a essa leitura é diferente.

É reconhecido que a maior força política hoje no Brasil é o antipetismo e que as forças progressistas estão em defensiva, o que exige um esforço maior para chamar a sociedade para o diálogo, abrindo mão de um radicalismo retórico que reforça a polarização, sabendo da necessidade de dialogar com o eleitor pobre e trabalhador que deixou de votar no PT e passou a votar em Bolsonaro. Portanto, se faz necessário um esforço para tentar construir pontes com a camada mais precarizada do eleitorado do Bolsonaro, onde for possível, para enfraquecer a maioria popular construída pela direita no país e construir uma nova maioria progressista.

Pode-se perguntar, agora que as duas interpretações estão apresentadas, qual das duas se aproxima mais da verdade. Para lidar com isso é necessário levantar uma série de fatos da política recente brasileira para nos ajudar na reflexão. É fato que – pelo menos desde a redemocratização – os dois governos Lula ofereceram uma melhora de vida jamais experimentada pelo brasileiro pobre, com aumento real do salário mínimo, queda no desemprego e crescimento econômico. Os dados econômicos da época mostram que a popularidade de Lula não foi construída do nada. Entretanto, não é possível negar que membros do PT participaram ativamente de esquemas de corrupção quando o partido esteve no governo. Assim como devemos reconhecer que o relacionamento do PT com os grandes grupos econômicos do país (bancos, empreiteiras e outros) sempre foi muito nebuloso, o que mostra uma espécie de abandono das causas populares, fundamentais para a criação do partido. Também não se pode negar a crise econômica pela qual o Brasil passa hoje foi gestada por políticas econômicas neoliberais aplicadas por Lula e Dilma, especialmente o ajuste fiscal aplicado por Dilma no segundo mandato. É sensato reconhecer que Dilma praticou um estelionato eleitoral ao dizer que não aplicaria o programa de Aécio e logo em seguida nomear Joaquim Levy (hoje presidente do BNDES de Bolsonaro), um encarregado do Bradesco, para tocar uma dura política neoliberal que afundou o Brasil em uma grave crise. Podemos lembrar que em 2014 já havia a operação Lava Jato com todos os seus abusos judiciais, já havia uma campanha pesada de boatos e mentiras contra Dilma e mesmo assim ela venceu. A popularidade de Dilma só despencou depois que ela adotou a política econômica de Aécio. Podemos chamar isso de coincidência? Por fim, os governos petistas pouco fizeram para encarar a situação de insegurança das nossas cidades, fazendo com que o clima de medo e insegurança aumentasse. Todo esse quadro conjunto de crise política e escândalos de corrupção, crise econômica aguda com aumento do desemprego e queda da renda do trabalhador, e violência crescente fez com que a base popular do PT ruísse de uma forma impressionante. Mesmo que o partido venha sofrendo com uma perseguição judicial e ataque midiático feroz, há elementos reais e bem concretos que justificam a perda do eleitorado mais pobre. Será que a falta em reconhecer isso não levou o partido a uma estratégia errada, que subestimava a força do antipetismo, impactando no resultado eleitoral?

Há muitos outros fatores que podem ter ficado de fora para explicar o resultado eleitoral de 2018, mas a tentativa aqui foi de elucidar alguns elementos centrais acerca das diferentes explicações sobre o que ocorreu em 2018, mostrando como as formas de enxergar a derrota acarretam consequências quase que diretas para a prática da oposição. Assim como tentar levantar, mesmo que brevemente, elementos recentes que podem ter contribuído para o quadro atual. Daí termos duas oposições.

Uma oposição que persiste na polarização pois acredita poder fazer frente ao poder da direita, que subestima seu poder e prejudica a comunicação mais direta com uma parcela importante do eleitorado. Essa tática pode funcionar, já que há uma parcela do eleitorado bastante expressiva que não se sente representada por ele. Entretanto, uma parcela maior do eleitorado não quis votar no candidato do PT, mesmo tendo um demagogo oportunista do outro lado. Não podemos deixar de lado.

A outra oposição preza por tentar construir pontes com o intuito de formatar uma nova maioria na sociedade para romper com a polarização que tomou conta do segundo turno, apostando em um setor progressista de classe média, mas também em um eleitorado mais precarizado e mais pobre – especialmente das grandes cidades – que abandonou o PT.

A questão levantada por essa outra oposição é saber como reconquistar o eleitorado perdido e como superar os erros passados. É um caminho de maior independência do PT, o que pode gerar algumas dificuldades. Quem vai sair ganhando? A disputa dentro da oposição vai continuar e o esforço feito aqui é justamente para tentar delimitar mais claramente o que cada grupo vê sobre a realidade política atual. Só saberemos o resultado das escolhas das duas oposições ao longo do tempo, analisando o desempenho político de cada força no cotidiano e nas eleições. Entretanto, um indicativo não muito positivo sobre nossos erros e acertos já foi oferecido em 2018. Teremos maturidade para uma leitura adequada?

  1. Assim, primeira coisa que me incomodou foi falar que o Ciro foi vaiado por petistas em um evento que era um congresso onde havia várias organizações políticas, pois é uma análise típica do senso comum de que todo mundo da esquerda é petista e, real, a gente não precisa desse reforço vindo das forças progressistas.
    Mas o principal é que o texto secundariza, e ao me ver se posiciona ao lado do bloco de oposição anunciado por Ciro mas que ainda não se mostrou, o tamanho da desinformação e manipulação que boa parte da população mais simples sofreu para votar em um candidato como o bolsonaro (e os deps, senadores e governadores q ele arrastou).
    É um fenômeno bastante complexo, mas acredito que o texto falha ao não apontar o peso que a campanha antecipada do bolsonaro teve, todo o apoio ilegal que teve de empresários e bancos.
    O antipetismo é um movimento forte, concordo plenamente, ele deve ser combatido, mas como você fala no segundo mês de governo que não vai compor a oposição ao executivo com o partido que mais tem cadeiras na câmara?
    Assim, estou bem longe de defender as medidas do pt enquanto governo, mas passada a eleição a população está refém das decisões que são tomadas em BSB, é uma questão de estratégia compor uma oposição para barrar leis que afetam a população, aprovar leis positivas e, inclusive desconstruir o governo. A via de luta parlamentar não é a única e nem mesmo de longe é a mais importante, mas ela existe e não deve ser negligenciada. Na real que para mim a posição do Ciro é de uma demagogia que se alinha a de Bolsonaro a que o texto se refere no final.
    Se não dá para votar no PT nem quando tem um demagogo do outro lado, me desculpa mas também não dá para votar num demagogo mais carismático.

    1. É um comentário com muitas dimensões, para tentar oferecer uma resposta mais completa é melhor irmos por partes:

      1. “Assim, primeira coisa que me incomodou foi falar que o Ciro foi vaiado por petistas em um evento que era um congresso onde havia várias organizações políticas, pois é uma análise típica do senso comum de que todo mundo da esquerda é petista e, real, a gente não precisa desse reforço vindo das forças progressistas.”

      O texto faz essa diferenciação. A UNE é uma entidade com uma direção composta por diversas organizações, haviam várias forças políticas presentes naquele evento e somente os petistas vaiaram Ciro e não o deixaram falar. Logo, dizer que “Ciro foi vaiado pelos petistas” corresponde com a realidade e faz justamente a separação necessária entre esquerda e PT. Nem todo mundo que foi lá vaiou o Ciro, não foi a UNE que vaiou o Ciro, mas sim um grupo de petistas e nem todo mundo que está lá era petista.

      2. “Mas o principal é que o texto secundariza, e ao me ver se posiciona ao lado do bloco de oposição anunciado por Ciro mas que ainda não se mostrou, o tamanho da desinformação e manipulação que boa parte da população mais simples sofreu para votar em um candidato como o bolsonaro (e os deps, senadores e governadores q ele arrastou).”

      O texto não secundariza isso. A questão é que essa é uma forma de interpretar a derrota em 2018 e não é unânime dentro da oposição. Esse é o objetivo do texto, tentar desnudar os pressupostos da atuação da oposição, que está dividida, mostrando que no seio dessa divisão reside uma interpretação sobre a derrota de 2018. Partindo do seu comentário se percebe que você já adere a essa interpretação como se não houvesse outra possível ou outros fatores relevantes para a discussão. O que é tratado é que há uma segunda interpretação que leva isso em conta mas leva em conta também os diversos erros do PT.

      3. “É um fenômeno bastante complexo, mas acredito que o texto falha ao não apontar o peso que a campanha antecipada do bolsonaro teve, todo o apoio ilegal que teve de empresários e bancos.”

      De novo, você parte do pressuposto de que a razão para a eleição do Bolsonaro foi a manipulação e quer julgar o texto todo a partir dessa régua, o que é incoerente já que o próprio texto se preocupa em discutir as interpretações divergentes acerca da vitória eleitoral de Bolsonaro. Interpretação nós fazemos com base na realidade, não somente com as nossas crenças. Esse tipo de leitura isenta o PT de responsabilidade sobre o que aconteceu, você realmente acha que o PT não teve nenhuma parcela de culpa no que houve? Nenhuma?

      4. “O antipetismo é um movimento forte, concordo plenamente, ele deve ser combatido, mas como você fala no segundo mês de governo que não vai compor a oposição ao executivo com o partido que mais tem cadeiras na câmara?”

      Não é um pouco arrogante essa postura? Só pq o PT teve a maior bancada eleita (cada vez menor, diga-se de passagem) a oposição é obrigada a se submeter a ele? Não é justamente esse tipo de postura que mina o diálogo e qualquer possibilidade de um acordo? Não foi essa arrogância que ajudou a eleger Bolsonaro?

      5. ” Assim, estou bem longe de defender as medidas do pt enquanto governo, mas passada a eleição a população está refém das decisões que são tomadas em BSB, é uma questão de estratégia compor uma oposição para barrar leis que afetam a população, aprovar leis positivas e, inclusive desconstruir o governo. A via de luta parlamentar não é a única e nem mesmo de longe é a mais importante, mas ela existe e não deve ser negligenciada. Na real que para mim a posição do Ciro é de uma demagogia que se alinha a de Bolsonaro a que o texto se refere no final.”

      ” Se não dá para votar no PT nem quando tem um demagogo do outro lado, me desculpa mas também não dá para votar num demagogo mais carismático.”

      Então, por isso que o texto fala em duas estratégias diferentes da oposição. Há um descontentamento com a forma com que o PT tem feito política nos últimos anos e esse descontentamento explica um certo afastamento, qual o problema? O PT já disse que o foco é o “Lula livre”, nós somos obrigados a engolir isso enquanto o governo prepara a destruição do nosso Estado e nossa soberania? Enquanto o PT não se ajeitar e não se renovar nós vamos ser reféns de todos os erros do partido? Isso é plausível?

      Por fim, acho que esses comentários me soam um ranço completamente irracional contra o Ciro do que qualquer coisa.

      Grande abraço!

      O texto faz essa diferenciação. A UNE é uma entidade com uma direção composta por diversas organizações, haviam várias forças políticas presentes naquele evento e somente os petistas vaiaram Ciro e não o deixaram falar. Logo, dizer que “Ciro foi vaiado pelos petistas” corresponde com a realidade e faz justamente a separação necessária entre esquerda e PT. Nem todo mundo que foi lá vaiou o Ciro, não foi a UNE que vaiou o Ciro, mas sim um grupo de petistas.

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