“O essencial numa boa e sã aristocracia é que esta não se sinta como função, seja de um rei ou de uma comunidade, mas último significado e a mais alta justificação deles, e que recebe de boa consciência o sacrifício de inumeráveis indivíduos, que, por causa dela, devam reduzir-se a serem homens incompletos, escravos, instrumentos. O seu credo fundamental deve resumir-se nisso, que a sociedade não deva existir pela própria sociedade, mas simplesmente como base, como alicerce, para servir de sustentáculo, de meio de elevação para uma espécie eleita de ser para que possam atingir os seus altos misteres e de modo geral, uma existência mais elevada; ao lado do cipó fixado ao solo da Ilha de Java, o cipó matador — que se prende ao carvalho para subirem acima dele e para lançar à esplêndida luz do sol a pompa de suas flores e expor então ao mundo a sua felicidade.” (NIETZSCHE. Além do bem e do mal. §258)
O projeto nietzschiano do super-homem (übermensh) é para a aristocracia sem culpa ou receio ter coragem de exercer sua função natural de liderança e controle da humanidade. Em Assim falou Zaratustra, Ecce homo e Gaia Ciência, Nietzsche descreve o übermensch, alguém com coragem de exercer o poder livre de toda a culpa cristã e da inconveniente ideia de igualdade cristã e moderna. “Só esses são os meus leitores, os meus autênticos leitores, os meus predestinados leitores: que importa o resto? O resto é simplesmente a Humanidade. Há que ser superior à humanidade em força, em grandeza de alma – e em desprezo…” (NIETZSCHE. O Anticristo.)
É exatamente o que presenciamos hoje. Pela última contagem da revista Forbes, publicada em 5 de março de 2019, existem 2153 bilionários no mundo, 55 a menos que no ano passado. Jeff Bezos tem a maior fortuna, 131 bilhões de dólares. Estão na lista Bill Gates, Warren Buffet, Bernard Arnault, Carlos Slim Helú, Armancio Ortega, Lary Ellison, Mark Zuckerberg, Michael Bloomberg, Larry Page, Charles e David Koch, Mukesh Ambani, Sergey Brin, Françoise Bettencourt Meyers, os Walton, Steve Ballmer, Ma Huateng etc. No total concentram 8,7 trilhões de dólares, algo em torno de 70% da riqueza global. Essas pessoas se conhecem, mesmo que não pessoalmente, sabem quem são, um verdadeiro clubinho fechado.
Alguns ainda se esforçam para terem uma imagem de bonzinhos, fazem doações, participam de programas de TV, doam bolsas de estudo para jovens do terceiro mundo etc. Alguns, por outro lado, não tem esta preocupação e exercem sem constrangimento sua natureza predadora que os levou a esta posição no ranking da acumulação. Gina Rinehart, uma bilionária australiana, em reportagem publicada no UOL economia em 5 de setembro de 2012, declarou que o salário ideal é o africano, de 2 dólares por dia. Segundo ela, a Austrália está ficando muito cara por que as mineradoras tem que lidar com salários mais altos e direitos trabalhistas e perde competitividade, por isso quer importar trabalhadores da África para trabalhar na Austrália. Outra pérola da bilionária foi bradar contra os “invejosos” que ao invés de trabalhar passam o tempo reclamando, bebendo e fumando. Esta é apenas uma bilionária que não perde a oportunidade de ficar calada e acaba expondo o clubinho ao ridículo.
Minha preocupação é com aqueles que operam de maneira silenciosa. Robert Mercer é um bilionário fundador da Cambridge Analytica, uma empresa de marketing digital que prestou serviço às campanhas do Brexit, Trump e outros candidatos em diversos países, incluindo o Brasil. A Cambridge não foi diretamente contratada pela campanha de Bolsonaro, pois à época o Observer já havia divulgado a invasão das 87 milhões de contas no Facebook com o conhecimento da Mark Zuckerberg. No entanto, seu ex-funcionário Steve Bannon operou (e ainda opera) como conselheiro da família Bolsonaro. A manipulação dos eleitores tanto no Brexit como na eleição de Trump já foi vastamente comprovada, inclusive sendo objeto de filme. Recomendo fortemente que todos assistam The Great Hack e Brexit: the uncivil war. O The Guardian, em reportagem de 4 de janeiro de 2020, avisou que vai publicar mais uma série de vazamentos da Cambridge Analytica que inclui a operação em mais de 68 países, uma infraestrutura global capaz de manipular eleitores numa escala industrial. Ocorre que os agentes desta operação não foram presos, pelo contrário, estão soltos e, considerados gênios do marketing digital, estão sendo contratados para campanhas vindouras, incluindo Trump.
Estes são exemplos de como este seleto clube de bilionários corrompe, manipula e controla governos e pessoas. Espoliam a humanidade, transferem trabalho e renda das pessoas para seus bolsos, sugam tempo de vida, e fazem isso sem qualquer culpa ou constrangimento. Não há hipótese de qualquer dessas pessoas ter concentrado esta quantidade descomunal de dinheiro sem ter explorado muita gente, corrompido agentes públicos, controlado e usado informação das pessoas e das empresas de maneira leviana e, para manterem sua posição no ranking, tem que continuar com essas práticas. Só que para Nietzsche isto não é corrupção. Corrupção é algo fundamentalmente diferente. Corrupção seria se esses bilionários renunciassem a seus privilégios, prerrogativas e se rebaixassem ao nível do resto da humanidade. (NIETZSCHE. O Anticristo).
Sim, Nietzsche fundamenta e justifica essa concentração de renda, a premeditada manipulação das consciências e o impedimento da liberdade. Afinal, esta classe superior de pessoas deve ser orgulhosa e “Não escondais mais a cabeça na areia das coisas celestes, mas portai-a livremente: cabeça terrena, que cria, ela sim, o sentido da terra.” E mais: “O super-homem é o sentido da terra! Proclamai a vossa vontade: que o super-homem seja o sentido da terra!” (NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra).
Culpa? Responsabilidade? Isso é coisa de cristão. “O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa. Supondo que tenhamos embarcado na direção contrária, com uma certa probabilidade se poderia deduzir, considerando o irresistível declínio da fé no Deus cristão, que já agora se verifica o considerável declínio da consciência de culpa do homem; sim, não devemos inclusive rejeitar a perspectiva de que a vitória total e definitiva do ateísmo possa livrar a humanidade desse sentimento de estar em dívida com seu começo, sua causa prima.” (NIETZSCHE. Genealogia da moral)
Empatia? Compaixão? Isso também é coisa de cristão. “O que é bom? – Tudo aquilo que desperta no homem o sentimento de poder, a vontade de poder, o próprio poder. O que é mau? – Tudo que nasce da fraqueza. O que é a felicidade? – A sensação de que o poder cresce, de que uma resistência foi vencida. Nenhum contentamento, mas mais poder. Não a paz acima de tudo, mas a guerra. Não a virtude, mas o valor (no sentido de Renascimento: virtu, virtude desprovida de moralismos). Quanto aos fracos, aos incapazes, esses que pereçam: primeiro princípio da nossa caridade. E há mesmo que os ajudar a desaparecer! O que é mais nocivo do que todos os vícios? – A compaixão que suporta a ação em benefício de todos os fracos, de todos os incapazes: o cristianismo…” (NIETZSCHE. O Anticristo)
Segundo Nietzsche, “De facto, a raça submetida adquiriu o predomínio com sua cor, a sua forma de crânio e os seus instintos intelectuais e sociais. Quem nos garante que a democracia moderna, o anarquismo, ainda mais moderno, e sobretudo esta tendência para a Comuna, para a forma social mais primitiva, para o socialismo não são essencialmente senão um monstruoso efeito de atavismo, de tal modo que a raça dos conquistadores e senhores, a raça ariana esteja a caminho de sucumbir por completo?…” (NIETZSCHE. Genealogia da moral)
E para evitar este trágico fim, é preciso criar uma nova narrativa. Hoje, criticar os nobres e a aristocracia, suas práticas e concentração de renda passou a ser considerado recalque, inveja, rancor ou ressentimento. Exatamente o que Nietzsche pregava (Genealogia da moral). A narrativa aceitável é de que a maioria da humanidade é folgada, vagabunda, fuma e bebe, e por isso não consegue ser bilionária, e alguns membros da classe média e pobres ainda reproduzem este discurso.
Qual o fundamento filosófico desta ideologia? A diferença. A tese fundamental de que não há igualdade, de que somos todos diferentes. Ontologicamente diferentes. O natural é a diferença. Há pessoas melhores e piores, mais fortes e mais fracas, mais inteligentes e mais estúpidas, mais capazes e menos capazes. E o natural é que a humanidade esteja a serviço dos superiores. Nietzsche distingue duas categorias de homens: os nobres e os escravos. Os nobres são os aristocratas, fortes, saudáveis, superiores; os escravos são plebeus, fracos, doentes, inferiores. Os nobres estão predestinados a dominar, sua autoridade não é responsável, mas louvável. Os escravos, incapazes de resistir pela força, reagem com ressentimento, ódio e vingança. Esse, para Nietzsche, é o fundamento da moralidade ocidental fundada na doutrina judaico-cristã.
É possível interpretar isto apenas como uma crítica à moralidade cristã? Sim, mas esta interpretação não se sustenta diante de uma leitura de sua obra. Como o próprio Nietzsche alerta: “A palavra «superhomem» para a designação de um tipo de suprema perfeição, em contraste com homens «modernos», com homens «bons», com cristãos e outros niilistas – uma palavra que, na boca de um Zaratustra, do aniquilador da moral, se torna uma palavra muito ponderada, foi entendida quase em toda a parte com plena ingenuidade, no sentido dos valores cujo contrário se manifestou na figura de Zaratustra, isto é, como tipo «idealista» de uma espécie superior de homem, meio «santo», meio «génio»…” (NIETZSCHE. Ecce homo.) Não se trata de bondade, genialidade, mas tão somente de vontade de poder exercida sem limite, o “Eu quero!” de Assim falou Zaratustra. Trata-se de um claro projeto de poder, a justificação do comando da humanidade por uma classe superior de homens destinados a cumprir seu papel de übermensch. Pois é exatamente o que vivemos hoje. A realização do projeto nietzschiano e aqueles que tão ferozmente combatem a ideia de igualdade tanto cristã como moderna prestam um imenso favor ao clubinho de bilionários.
Por Nathalie de la Cadena