Moxie, feminismo e adolescência

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“Moxie: Quando as garotas vão à luta” é um filme dirigido por Amy Poehler, produzido a partir do romance de 2018, com o mesmo nome. A trama do filme inicia com a protagonista Vivian (Hadley Robinson), adolescente branca, loira e olhos azuis, que durante um sonho tem um sentimento agonizante, que a faz despertar aterrorizada em mais uma manhã comum.

A cena e a construção que dela se despende retratam um sentimento intrínseco primeiramente experimentado, por meninas e mulheres brancas (a quem nos referiremos assim, à pessoa que se identifica com o gênero feminino), das etapas de libertação ou do despertar. Há primeiro um incômodo “não sei de quê”, seguido de uma sensação de aprisionamento e incompreensão, bem como do enfretamento de juízos externos e autocensura, que trazem a voz de fundo de que “isso é bobagem”, que é melhor “seguir tranquilamente, sem arranjar confusão”, pois há uma visão, consciente ou inconsciente, de que as reações poderão prejudicar a convivência doméstica, a relação com o chefe, com a família, com o professor, ou com quem quer que seja.

O filme traz a percepção de adolescentes brancas, já que as adolescentes do grupo de minorias já haviam compreendido a discriminação a que eram submetidas tanto por serem mulheres quanto por serem de um grupo inferiorizado, diferenciando-se a forma de reação quando confrontadas com situações opressoras.

Vemos que a inferiorização de gênero é universal, mas a forma de despertar o entendimento sobre a condição é singular e possui especificidade. Vivian, a adolescente branca, passa por um processo de autoconhecimento, confrontando os comportamentos sexistas a partir de conversas com sua mãe Lisa (Amy Poehler), bem como de livros e músicas com a temática das lutas feministas, razão que ela elabora panfletos denominados “moxie” com conteúdo sobre igualdade e liberdade das mulheres na mesma medida concedida aos meninos e homens.

Importante mencionar que Vivian teve uma oportunidade que poucas mulheres percebem, que é a de evidenciar as dificuldades experimentadas por outros grupos de mulheres, já que sua amiga Claudia (Lauren Tsai), que é filha de imigrante, entende que sua posição é bastante diferente de Vivian ao dizer: “Vivian, você é branca. Minha família lutou muito para que eu estudasse. Dá licença”, quando confrontada sobre o motivo de não aderir a mobilização organizada pelo moxie.

A nova aluna do colégio, Lucy (Alycia Pascual Pena), adolescente negra, caribenha, também mostra à Vivian que as mulheres não devem se submeter às imposições machistas, quando afirma que “eu não baixo a cabeça pra ninguém”, e isso é resultado de resiliência e resistência.

O despertar da adolescente branca Vivian, contribui para a transformação da escola, e isso é louvável, já que ninguém nasce feminista, mas torna-se feminista. Assim, o anseio por ter suas inquietações ouvidas talvez pareça revolucionário e inclusivo a todas as mulheres, mas se não for compreendido com a sensibilidade das demandas de mulheres negras, orientais, mulçumanas, por exemplo, não contribui para o fim da inferiorização destinada as mulheres. Então, esse processo de reconhecimento da pauta feminista impõe continuidade na luta contra toda forma de opressão.

Nesse sentido, bell hooks afirma que mulher também oprime mulher, e isso pode ser identificado a partir da personagem da Diretora Shilley (Marcia Gay Harde), que como mulher, com formação acadêmica e pedagógica, esperava-se que fosse acolher as denúncias de discriminação e assédio com seriedade, porém ela preferiu o silenciamento das vítimas, argumentado se tratar de mero incômodo.

Quando uma das alunas vai de regata na sala em um dia de calor, a diretora Shilley interrompeu a aula, acendendo a luz e chamando a atenção dessa aluna, dizendo para ela se cobrir ou trocar de blusa. Ela olha para o lado e diz que há outra menina com a mesma blusa. Todos e todas as observam, ressaltando a diferença física entre as garotas, alguns rindo, e a situação causa extremo constrangimento em ambas.

Nesse âmbito, é sublinhado que os garotos andam sem camisa e com regatas na escola, sem serem reprimidos, bem como que para as líderes de torcida são destinados uniformes muito curtos, mas, não é permitido na escola utilizar blusas que mostrem os ombros.

Apesar de o filme datar de 2021, as referências feministas descobertas por Vivian são dos anos de 1990, na perspectiva de mulheres brancas e músicas, dentre elas Rebel Girl da banda Bikkini Girl, porém, sequer mencionando a luta das mulheres negras norte-americanas dessa mesma época. Angela Davis narra que as mulheres negras sempre lutaram por reconhecimento e pelo direito a ocupar espaços iguais a outras pessoas, frente à perversidade do racismo e sexismo, que perpassa e vai muito além do acesso ao mercado de trabalho. Todavia, essa visão de luta não passa pelas lentes do filme.

Vejamos que em algumas cenas, Meg (Emily Hopper) uma aluna com deficiência encontra obstáculos para acesso à escola com sua cadeira de rodas, já que o acesso estava barrado por meninas insensíveis a sua necessidade.

O filme também permite a reflexão sobre a naturalidade e normalidade com que adolescentes aguardam uma “lista” feita pelos meninos do time de futebol, em que eles classificam as meninas do colégio a partir de comportamentos e estereótipos, classificando as adolescentes em categorias como “melhor bunda”, “mais pegável”, “melhores peitos” e uma nova categoria é adicionada e destinada à Lucy com uma conotação tão esdrúxula e ofensiva, que não é sequer citada, fazendo-nos divagar sobre todos os adjetivos absurdos, vergonhosos e racistas endereçados às mulheres e meninas negras.

Apenas Lucy demonstra insatisfação com a lista. Note-se que que desde a sua primeira aula na escola, ela se torna alvo da estrela do time de futebol Mitchell (Patrick Schwarzenegger), adolescente branco de olhos azuis, e seu comparsa Blaze (Darell M Davie), jovem negro, ambos pintados como clássicos estereótipos machistas, misóginos e narcisistas. Mitchell começa uma abordagem assediadora e racista, que inicia na sala de aula, mas é cortada pelo professor, inobstante, sem quaisquer consequências.

No refeitório, Lucy vai buscar um refrigerante após a aula e logo é novamente abordada por Mitchell, que faz insinuações e diretamente vai colocar suas mãos sobre ela. Além dos problemas anteriormente suscitados, na visão de Mitchell, ele é desejado e toda mulher estaria inegavelmente interessada nele, buscando escrachar e impor esse tipo de imagem à escola. A fragilidade masculina é então evidenciada com a impossibilidade de ouvir não, ainda mais quando é proferido por uma pessoa do grupo subalternado: mulher e negra. O fato de Lucy ter acabado de ingressar na escola, também é aproveitado por Mitchell, presumindo que ela é um alvo ainda mais vulnerável, já que não tem amizades. Mais tarde, é revelado também que Lucy relaciona-se com uma das outras meninas – Amaya (Anjelika Washington) -, de modo que há um grande potencial de ela ter se mantido reservada quanto a isso, em virtude do ambiente hostil da escola.

Cumpre esclarecer que o movimento feminista não possui pautas homogêneas, porque há diversidade nas mulheres e em suas reivindicações, mas em nenhum lugar ele é um movimento anti-homem. Sobre isso, bell hooks afirmou que “um homem despojado de privilégios masculinos, que aderiu às políticas feministas, é um companheiro valioso de luta, e de maneira alguma é ameaça ao feminismo; enquanto uma mulher que se mantém apegada ao pensamento e comportamento sexistas, infiltrando o movimento feminista, é um perigosa ameaça” (HOOKS, 2018, p. 31).

Esta pauta foi mostrada no filme quando Seth, que se torna namorado de Vivian, assegura que vai deixar no banheiro masculino os panfletos da Moxie, e que quando ocorre protesto, no qual as meninas vão de regatas à escola, contrariando a diretora Shilley, ele se posiciona ao lado delas. Essa fotografia tem o adendo de explicitar que a desconstrução das noções de masculino e feminino e aceitação de que condições melhores às meninas e mulheres são benéficas também aos meninos e homens contribui para mitigar pressões sociais e padrões impostos, como a ideia de que o homem não pode ser sensível, de que deve sempre ser o provedor da casa – estigmatizando os homens desempregados ou donos de casa -, de que não cabe ao homem cuidar ou dar atenção aos filhos – afastando pais, filhos e filhas – e assim por diante.

Também, é conferida relevância ao relacionamento com o parceiro, que apoia as mesmas lutas contra a discriminação de gênero, raça e qualquer outra forma de exploração do indivíduo. Seth é o único “menino” que aparece com o sinal de apoio às causas feministas, porém o filme segue mostrando que os discípulos do Mitchell na turma vão diminuindo, conforme as suas ações são escancaradas.

A indiferença de Lucy com relação a Mitchell o transtorna de uma maneira que ele passa a divulgar uma imagem inversa, utilizando seu status naquele meio, para disseminar a ideia de que Lucy teria sido rejeitada pelos meninos do time de futebol e por isso ela é implicante com eles sem justificativa plausível. Essa “inversão” ou revitimização é muito comum nas relações de violência, nas quais o agressor ou agressora se apega em um resultado não alcançado ou em uma expectativa não satisfeita e utiliza-o para criar uma situação de constrangimento contra a vítima, ou seja, culpabiliza-se a vítima pelas discriminações, violências e crimes sofridos.

Quando Mitchell tenta tocar Lucy, ela recua e diz para que ele não encoste nela, porque não foi concedida permissão para que ele toque em seu corpo, de modo que ele responde que não tem necessidade para “piti” ou “chilique”. Vivian vê a situação toda acontecendo e nada faz, pois, esse comportamento do colega é visto como parte de sua personalidade, e se ninguém o enfrentar, ele vai “perturbar” outra pessoa. Nesse momento, Vivian ainda não tem dimensão de que o comportamento do colega não era chato e normal, mas sim violento, e que o fato de dar liberdade para ele ir em busca de outra pessoa/ vítima é manter a violência normalizada.

Há no imaginário social “o mito da mulher negra disponível, o homem negro infantilizado, a mulher mulçumana oprimida, o homem mulçumano agressivo ou do homem branco liberal são exemplos de como as construções sociais de gênero e de ‘raça’ interagem” (KILOMBA, 2019, p. 94). Mitchell acreditava que tinha poder para fazer o que quisesse, pois estava “garantido” pelo seu destaque como capitão do time de futebol e por ser homem branco.

Então, para confrontar essa lógica machista, as meninas apresentaram Kiera (Sydney Park), capitã do time de futebol feminino, para concorrer ao título de Melhor Atleta do ano contra Mitchell. Apesar dos esforços colocados nessa luta, Kiera acabou sendo derrotada, tendo como consequência mais perseguição contra todas as integrantes do moxie por parte da diretora, que suspendeu a Claudia por supostamente liderar o grupo. Na verdade, Claudia fez o registro institucional do grupo, mas alguém precisava ser punido, e a diretora atacou a adolescente que teria mais prejuízos acadêmicos por ser filha de imigrantes. A derrota mostrou que na realidade, as lutas contra as violências são complexas, e que o fato de ter acontecido uma perda não deve ser utilizado para mitigar suas reivindicações.

À exceção do Seth, ninguém sabia que os panfletos da Moxie foram elaborados por Vivian, que para afastar as acusações da sua amiga Claudia, e denunciar um estupro praticado por Mitchell, pinta a fachada da escola com a palavra “estupro”, e chama todos para ouvirem sua confissão. Desse ponto para frente, todas as meninas são instigadas a contar um depoimento e ao mesmo tempo são mutuamente acolhidas. A diretora finalmente parece que vai punir Mitchell pelo crime praticado contra sua ex-namorada e colega da escola.

A instituição retroalimenta a reprodução da desigualdade quando não enfrenta os problemas estruturais das violências praticadas no âmbito interno de seus membros, estudantes, funcionários etc., de modo que se torna tão culpada pela violência quanto seu agressor. Shilley é obrigada a se posicionar contra as denúncias de agressão, pois não fazendo, evidentemente sua própria carreira poderia ser prejudicada. Ou seja, torna-se vergonhoso e eticamente repugnante o apoio a práticas de discriminação – além de ser um risco para a manutenção no cargo como diretora.

Então, nas lutas contra a opressão de raça, classe e gênero sabemos que existem apenas dois lados: a favor e contra. Qual é o seu lado nessa luta?

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Escrito em conjunto com Thaís Duarte Zappelini.

Pesquisadora no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) da FGV DIREITO SP. Doutoranda e Mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM); Bacharel em Direito pela mesma Universidade; Integrante do Grupo de Pesquisa Estado e Direito no pensamento social brasileiro, vinculado ao PPGDPE/UPM. Advogada e Professora.

Referências:

– HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo. Tradução de Ana Luiza Libãnio. 1.ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.

– KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

– MOXIE: Quando as Garotas Vão à Luta – 2021. Estreia: 3 de março de 2021 -Netflix / 1h 51min / Comédia, Drama/Direção: Amy Poehler/ Elenco: Hadley Robinson, Lauren Tsai, Nico Hiraga.

Trailer do filme: