Lina Bo Bardi e a arquitetura social como projeto de país

img Lina Bo Bardi posa ao lado de cavalete com obra de Vincent van Gogh durante a construção do MASP - Lew Parrella
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Apaixonada pelas paisagens do Brasil, e em constante afinidade com a nossa cultura, a arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, que possui incursões pelo design, crítica cultural e curadoria, não atuou somente na construção de notáveis edifícios das cidades de São Paulo e Salvador, mas também nos deixou um legado múltiplo e libertário ao olhar o espaço urbano como um ambiente propício à materialização de suas ideias artísticas extremamente carregadas de significados políticos e humanistas.

Lina Bo Bardi posa ao lado de cavalete com obra de Vincent van Gogh durante a construção do MASP - Lew Parrella - completa
Lina posa ao lado de cavalete com obra de Vincent van Gogh durante a construção do MASP – Lew Parrella

Achillina Bo, nascida na Itália em 1914, licenciou-se em arquitetura na Universidade de Roma em 1939.  Com uma sólida formação, veio para o Brasil com seu marido Pietro Maria Bardi, crítico de arte e jornalista, em 1946, o qual foi convidado para encabeçar a criação do Museu de Arte de São Paulo (MASP).  Apesar de ter se radicada tardiamente em nosso país, onde viveu até os seus 77 anos, Lina conseguiu constituir um esteticismo cívico-coletivo ao contrastar os ideais comunistas transportados da Europa com a realidade sociocultural do Brasil.

Vinda de uma Itália assolada pela Segunda Guerra Mundial, Lina instala-se em São Paulo com uma bagagem cultural imensa. Em contato com a vanguarda modernista brasileira e com influências filosóficas que vão desde Bruno Zevi a Antônio Gramsci, encontrando um Brasil à espera do famigerado desenvolvimento nacional, a arquiteta utilizou-se dos contextos sociais e espaciais para imprimir seu estro crítico que valoriza não somente o monumento em si, mas o ser humano e a reflexão política que da obra reverbera.  Tanto no MASP, quanto no Sesc Pompeia, é possível verificar a intensão dialógica, nos quais os espaços, sem impeditivos ‘classistas’ comumente associados a centros culturais hoje, clamam por povo.

Obra que revela um cuidadoso olhar para o espaço urbano, o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand é sua primeira obra de caráter público, na qual as pessoas são a peça-chave para a perfeita harmonia concreta intencionada por Lina. O vão livre não só articula o cotidiano com a arte, mas proporciona encontros de variados objetivos, sejam políticos e feministas, sejam literários e amorosos. Assim sendo, esta intervenção urbana, com seus arranjos que buscam a ruptura com o velho e o arcaico sem esquecer-se da tradição, consolidou um dinamismo lúdico típico da vida metropolitana.

img Lina Bo Bardi Museu de Arte de São Paulo, 1969. Avenida Paulista, 1578. São Paulo. Hans Gunter Flieg - Acervo Instituto Moreira Salles
Museu de Arte de São Paulo, 1969. Avenida Paulista, 1578. São Paulo. Hans Gunter Flieg – Acervo Instituto Moreira Salles

Em sintonia com a valorização da cultura popular contextualmente empreendida pelo Movimento Moderno, a arquitetura despojada de Lina Bo Bardi não exclui ou segrega. Expressando os valores da igualdade e liberdade, o Sesc Pompeia é um exemplo de obra que é marcada pela abertura não só dada ao rico, intelectual ou adulto, mas ao pobre, iliterado e às crianças. Na verdade, como um Centro de Lazer e Cultura advindo de um processo de recuperação de uma antiga fábrica, Lina refletiu neste espaço a base de seu percurso estético-filosófico: a desmontagem e a transformação visando à ressignificação.

Hoje, para além do diálogo entre o popular e o erudito, o Sesc Pompeia consolidou-se como um dos maiores espaços de resistência cultural e, sobretudo, política da Zona Oeste da capital paulista, haja vista as manifestações de grupos conservadores contrários a um evento realizado no local com a participação de Judith Butler, uma das mais importantes filósofas estadunidenses contemporâneas.

img Sesc Pompeia, de Lina Bo Bardi. Cortesia de The Graham Foundation
Sesc Pompeia, de Lina Bo Bardi. Cortesia de The Graham Foundation

Ainda pávida com a barbárie da Segunda Guerra Mundial e os horrores praticados pelos regimes totalitários nazifascistas, ao morar na Bahia, Lina deparou-se com a realidade brasileira e, em específico, a nordestina, observando as semelhanças e diferenças com os lugares pelos quais passou perante a sua trajetória artística. Em Salvador, cidade em que viveu durante anos, assimilou a cultura popular local enrijecendo a sua sensibilidade social.

Somado à arte popular nordestina e ao contexto cultural nacional influenciado pela identidade verdadeiramente brasileira de Lúcio Costa e Vilanova Artigas, foi na década de 80 que, em detrimento de regras técnicas e formais, Lina mostrou a importância de entender e  conectar-se com o contexto humano e social para poder projetar.  Ao atuar na restauração do Solar do Unhão, intervindo cuidadosamente no local, transmitiu a arquitetura acessível e humanizada em busca incansável pelo espaço democrático e igualitário.

img Lina Bo Bardi no canteiro do restauro do Solar do Unhão, 1962
Lina no canteiro do restauro do Solar do Unhão, 1962

Seja como for, em oposição à cidade submetida à racionalidade e às dinâmicas do mercado, a arquitetura de expressão social de Lina Bo Bardi deve ser resgatada para reafirmarmos os espaços comuns como locais de resistência. Lamentavelmente, as cidades brasileiras estão na contramão deste movimento: os cercamentos urbanos e a propriedade privada inflexível quanto à sua função social seguem sendo a tônica quando o assunto é direito à cidade.

Em que pesem as evidências de uma arquitetura monumental contemporânea preocupada com o espetáculo, forjada num esteticismo vazio em meio a remoções, expulsões e limpezas de claro caráter étnico-social, todo projeto de país que tenha dentre os seus objetivos a superação do subdesenvolvimento e o combate ao urbanicídio, deve embasar seu florescimento em uma construção cultural autônoma que tenha cunhado em seu gene os valores do léxico popular.

“Quando a gente nasce não escolhe nada, nasce por acaso. Eu nasci aqui, escolhi este lugar para viver. Por isso, o Brasil é meu país duas vezes, é minha Pátria de Escolha, e eu me sinto cidadã de todas as cidades, desde o Cariri, ao Triângulo Mineiro, às cidades do interior e às da fronteira.” Lina Bo Bardi