Leonel Brizola: um Século da Rebelião Brasileira

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No gabinete da Sala Oval em Washington, coração do império estadunidense, havia um nome que aterrorizava os arrogantes senhores do mundo mais do que qualquer outro: Leonel de Moura Brizola. Na encruzilhada da história em que nos encontramos, todos os brasileiros são convocados a se reencontrar com seu espírito rebelde, corporificado no caudilho gaúcho que neste sábado (22) completaria seu centenário.

Ler o noticiário sobre o Brasil nos últimos tempos é doloroso. Cravadas em nossas veias, garras imperialistas rasgam nosso tecido industrial, roubam nosso petróleo, nossa Amazônia, saqueiam nossa tecnologia, jogam brasileiro contra brasileiro numa guerra inútil e cotidiana na crise da segurança pública. Toda uma geração de jovens se perde na informalidade e no crime em cidades com a infra-estrutura decadente. 

Em seus prédios envidraçados na Faria Lima, os traidores do Brasil se regozijam ao ver suas planilhas de excel inchadas com o sangue de nossos compatriotas. Os trabalhadores do Brasil nunca estiveram tão submetidos à super-exploração e à humilhação num mercado de trabalho que é um verdadeiro moedor de carne.

Um palhaço faz estripulias no Palácio do Planalto, manchando nossa reputação, com o único intuito de desviar a atenção do que está verdadeiramente acontecendo: tenebrosas transações por baixo dos panos, que nos espoliam de nossas riquezas. Quem deveria proteger nossa soberania jura vassalagem ao Império, reduzindo nosso país a uma mera província estadunidense, um pequeno peão nas lutas internas da guerra civil oculta travada pela plutocracia norte-americana em franca decadência. 

Mais uma vez, os ventos do norte nos trazem o cheiro de pólvora. O arranjo neoliberal que por tantas décadas assegurou o domínio da plutocracia financista chega ao seu fim. Trovões anunciam que novamente a tempestade da guerra pode engolfar a Europa e os países centrais. O imperialismo nunca esteve tão agressivo. O mundo dança à beira do abismo de uma crise sanitária em meio a uma crise econômica em meio a uma crise geopolítica. O cavaleiro do apocalipse nuclear cavalga junto da fome e da peste.

É nessa encruzilhada histórica que o espírito da Rebelião Brasileira completa 100 anos.

Brizola era mais do que simplesmente o que sua pessoa podia alcançar. Por sua garganta ecoava toda a voz de um povo e seu punho erguido era o gesto de Rebelião de toda uma nação. A verdade que toneladas de ideologia liberal e individualista procurou ocultar é que sua liderança carismática organizava os trabalhadores do Brasil segundo suas demandas concretas, agindo sobre o todo do país como um só sujeito coletivo. Esse é o fenômeno que a ideologia apátrida que nos domina pejorativamente procura enquadrar como “populismo”. 

Já em sua juventude, Brizola sempre esteve ao lado de Getúlio Vargas. Foi parte ativa da fundação do PTB, emergido depois do golpe de 1945 pelas mãos dos trabalhadores sindicalizados que não se identificavam nem com o pedantismo estrangeirista dos pecebistas e nem com os “punhos de renda” das oligarquias rurais do PSD. 

Como jovem governador do Rio Grande do Sul, Brizola fez o que nem Fidel Castro havia realizado àquela altura: nacionalizou as transnacionais que se recusavam a aumentar a cobertura elétrica e telefônica do estado sulista. O caudilho lançou as bases do desenvolvimento de uma região até então moderadamente atrasada, deixando legados como as brizoletas, que promoveram um salto qualitativo da educação gaúcha.

O heroico feito da Campanha da Legalidade de 1961 mostrou o poder da Rebelião Brasileira. Com mobilização popular e patriótica, derrotou os golpistas que queriam submeter nosso país aos jogos geopolíticos do norte, afirmando nossa soberania e nossa autonomia para encontrar nosso próprio caminho para superar a dependência e o neocolonialismo.

Resistiu junto a Goulart contra o golpe dos traidores que em 1964 submeteram o Brasil, transformando-o em colônia dos EUA. De fora do Brasil, organizou a resistência contra o regime entreguista, sempre defendendo a tática da insurreição civil-militar – a mesma que levara a Revolução de 1930 até a vitória.

Brizola pagou um preço alto por seu patriotismo. Amargou o mais longo exílio que se tem registro durante o regime colonial de 1964, ficando quase 15 anos fora de sua terra natal. Foi perseguido implacavelmente mesmo fora de seu país e por pouco escapou do trágico destino que acometeu Goulart, que em vida nunca pode retornar para o Brasil.

Durante a redemocratização, lutou ao mesmo tempo contra o moribundo regime colonial-militar e contra a maré neoliberal que arrastava todo o mundo. O caudilho teve de reerguer seu partido das cinzas, com uma nova sigla – o PDT – enfrentando a macabra figura de Golbery e o conluio da Globo no escândalo da Proconsult que tentaram roubar–lhe a eleição no Rio de Janeiro, assim como haviam furtado a sigla PTB.

Junto de Darcy Ribeiro, mostrou o que podia ser um Rio de Janeiro popular. Os CIEPs são a mais exitosa política educacional da história brasileira, sucateada pela inveja dos gestores petistas que almejavam destruir o PDT acima de tudo. Construíram a Sapucaí para ser o templo do samba e do carnaval, um ode à brasilidade e uma declaração de amor à nossa carne morena e mestiça.

Com sua didática inigualável, Brizola não se cansava de repetir que eram as perdas internacionais que mantinham nosso país em sua condição subordinada. O caudilho não hesitava em apontar os culpados: as transnacionais, as finanças internacionais, parte da nossa elite entreguista, que vende o país e ganha no ágio e principalmente as potências imperialistas.

Era igualmente cristalino ao reivindicar o legado de Vargas como seu, sobretudo a Carta-Testamento. Brizola era junto de Goulart os principais herdeiros da Revolução de 1930 e seus continuadores na batalha pela soberania nacional e pela construção do socialismo brasileiro.

Brizola era o pânico dos estrategistas do Império Estadunidense. Porque eles sabiam que o Brasil era a principal ameaça à sua hegemonia mundial, disputando com o próprio EUA pela primazia no hemisfério americano. Um Brasil soberano, nacionalista, altivo e socialista mudaria a correlação de forças em toda a América Latina e em todo Terceiro Mundo para sempre. Daí o esforço obsessivo do imperialismo e de seus vassalos em apagar o legado de Vargas e de Brizola. 

É dessas belezas da história que o centenário do caudilho coincida com o bicentenário da Independência. Em 1822, dom Pedro I e José Bonifácio foram os artífices da estratégia brasileira que se aproveitou das contradições dos países centrais mergulhados nas Guerras Napoleônicas para conquistar nossa emancipação política. O peso de um Império Tropical com as proporções brasileiras permitiu que a América do Sul passasse quase ilesa pelas pretensões imperialistas da França, que queria reconquistar colônias em nosso continente, como tentou fazer com o México. Foi a força do Brasil forjado por Dom Pedro e José Bonifácio que impediu o expansionismo francês na calha norte do rio Amazonas. A Revolução de 1930 também aproveitou as contradições do Primeiro Mundo mergulhado nas Guerra Mundiais e na Grande Depressão para lançar os alicerces de nossa soberania econômica.

A Revolução Brasileira é continuação e ruptura com a Independência e a Revolução de 1930.

Mais uma vez, na encruzilhada da história na qual os fantasmas da guerra, da peste, do imperialismo e da fome voltam a assombrar os povos colonizados, somos convocados a exercer a grandeza que já tivemos no passado. O centenário de Brizola não é meramente uma data para se lembrar dos feitos do passado. É para manter acesa a chama de sua rebeldia, cujo fundamento é a esperança na missão universal do Brasil:

Ser o campeão para a libertação de todo Terceiro Mundo, berço da Rebelião de toda a América Latina, Roma Tropical que comemora a mestiçagem na raça de todas as cores, o Brasil e mostra para todo o mundo uma alternativa civilizatória à barbárie europeia.

[…] Tenham absoluta certeza de que dificilmente os planos que pretendem realizar na América Latina alcançarão resultados, se aquele pré-requisito para o desenvolvimento, que é o da remoção da interferência dos interesses de grupos econômicos americanos na nossa economia, não for preliminarmente atendido.[Devemos] realizar as reformas internas, das quais necessitamos. Reformas estruturais e, sobretudo, reformas que nos permitam assumir o controle das organizações que interferem negativamente em nossa prosperidade econômica e social; só após essas reformas, o humilde trabalhador, modesto e simples, que esteja movimentando as nossas máquinas ou mesmo cuidando da terra, terá a certeza de que o fruto de seu trabalho, a riqueza que está criando é nossa, é do Brasil, é dos Brasileiros”. – Leonel de Moura Brizola, discurso na UNE em 16 de junho de 1961.

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