O “príncipe” Jair como expressão do patriarcado autocrático

O principe Jair como expressao do patriarcado autocratico
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Por Juliana Leme Faleiros – Estamos na reta final do processo eleitoral deste ano de 2022, sendo que os dois concorrentes à frente são o atual presidente e o ex-presidente Lula. O atual segue no segundo lugar com grandes chances de perder o pleito em vista de sua altíssima rejeição, mantida na média de 50% conforme os resultados das pesquisas de opinião. Consigne-se que a rejeição reside, fortemente, no eleitorado feminino, 54%, de acordo com IPEC.

No meio disso, o país promove festividades e reflexões sobre o bicentenário da Independência do Brasil. No dia 07 de setembro, aconteceram paradas cívico-militares por todo o país, valendo destacar as que aconteceram em Brasília e Rio de Janeiro em vista do uso do aparato público pelo atual presidente para, sem a presença dos presidentes do STF, do Senado e da Câmara, celebrar e fazer comício. Tanto na capital federal quanto na capital fluminense, seu reduto eleitoral, o presidente usou do palanque para agredir adversários, principalmente, o ex-presidente Lula que lidera as pesquisas, e fazer declarações dúbias sobre possível golpe.

Além das vulgaridades comumente ditas pelo atual presidente, a novidade foi declarar que os homens devem procurar princesas para se casarem e puxou um coro, ao vivo e em cores, autointitulando-se “imbrochável”. É digno de nota – e de vergonha nacional – que o atual inquilino do Planalto expôs e impôs aos brasileiros o debate sobre sua vida sexual.

Não é novidade que o atual presidente faça uso desse expediente inominável para chamar a atenção de sua claque. É useiro e vezeiro no uso de ambiguidades com conotação sexual: sua fixação pelo sexo e pela afirmação da virilidade são, realmente, algo comum em suas declarações. Também é recorrente, na mesma medida, seus acessos de fúria misóginos em relação às mulheres: a filha que é fraquejada, a deputada que não merece ser estuprada, a jornalista que deu o furo, as mulheres que não devem ser contratadas porque engravidam. O palavrório histriônico tem uma série exaustiva de violências, basta uma busca rápida na internet.

Inclusive, em seis de setembro, um dia antes da comemoração do bicentenário, o atual presidente, em sabatina transmitida ao vivo, agrediu a jornalista Amanda Klein por ela ter perguntado sobre a compra de dezenas de imóveis em dinheiro vivo, totalizando R$ 25 milhões, por ele e seus familiares. Em resposta colérica o presidente disse: “Amanda, você é casada com uma pessoa que vota em mim. Não sei como é o teu convívio com ele na sua casa”, momento em que ela disse que sua vida particular não estava em debate e, ele, imediatamente, respondeu “a minha [vida] particular está em pauta, por quê?” e ela: “Porque o senhor é uma pessoa pública. O senhor é o presidente da república.”

Cabe trazer esse caso específico, dentre tantos ataques às mulheres, porque, além do ainda presidente da República não ter respondido como adquiriu tantos imóveis com dinheiro vivo, se defendeu dizendo que sua vida privada não é tema de sabatina. Pois bem: e a sua performance sexual? É de interesse público? Uma inversão indizível e indigna. Na frente das famílias brasileiras, tão defendidas por ele, o presidente fala de seu desempenho sexual e, num piscar de olhos, o bicentenário da independência do país desloca-se para o seu modo incivilizado, obrigando os meios de comunicação, nacionais e internacionais, a repercutirem a infame autodeclaração do chefe da nação brasileira.

Enquanto 33 milhões de pessoas estão em insegurança alimentar, a informalidade ultrapassa o emprego formal, a Amazônia é queimada e a economia devastada pela inflação, o presidente quer dar visibilidade a sua vida sexual. À primeira vista, poderia dizer que Jair Messias Bolsonaro é um bufão fanfarrão e que sua postura seria, na verdade, um desvio de percurso. Mas não, ele é o resultado do processo histórico brasileiro, ele é a mais fina e acabada representação predominante do brasileiro: homem branco, cristão defensor da família brasileira, ignorante, agressivo, racista, misógino, vinculado aos militares, baluarte da propriedade, fundamentalmente rural, e patrocinador do extermínio dos povos originários. Antes que digam que “nem todo homem”, o ponto aqui é demonstrar que ele é o homem típico do patriarcado autocrático e, se assim não fosse, não teria sido eleito, não teria milhares de apoiadores #fechadoscomBolsonaro nem correríamos o risco de sua reeleição.

O patriarcado autocrático está atrelado ao que Florestan Fernandes entende como “a dominação patriarcal inserida em uma sociedade em que o direito de mandar e o dever de obedecer se acham rigidamente confinados, concentrando o poder na mão de um número restrito de cabeças da parentela.” O patriarcado autocrático é autoritário, antidemocrático e organizado na base da tradição e das relações hierárquicas, profundamente violentas. Desse modo, a mulher independente, que se faz sujeito além da família, é uma ameaça à sociedade, daí a necessidade de que seja enquadrada no modelo de princesa.

O patriarcado autocrático produz concepções de feminino e masculino bastante marcados, estereotipados e dicotomicamente complementares, nos quais, cada integrante tem papéis rígida e hierarquicamente definidos. É o enlace entre o príncipe imbrochável e a princesa submissa. O patriarcado autocrático está sempre no entremeio entre a ciência e a religião, entre a tradição e a modernidade, entre o velho e novo, submetendo as mulheres a regras exógenas, ou seja, de forma heterônoma ou dependente, e os homens a papéis de mando e violência.

É curioso que o coro sobre sua performance sexual tenha acontecido exatamente no momento em que o Brasil celebra o bicentenário de sua independência. O Brasil vem sendo forjado pelo lema um manda (o senhor) enquanto os outros obedecem (toda a parentela, agregados, subordinados, homens e mulheres) e o atual presidente encarna essa figura tão tradicional quanto moderna, simbolizando a superioridade do macho.

Quando a própria vida sexual do presidente se sobrepõe aos interesses de milhares de pessoas sem comida e sem teto, numa inominável e perversa inversão, fica mais do que evidente que o processo eleitoral de 2022 é a oportunidade de colocarmos nos bancos dos réus esse modo de ser e de agir, condenando o patriarcado autocrático à pena de banimento e instalando, de fato, um novo projeto societal.

Por Juliana Leme Faleiros

Advogada. Doutora e mestra em Direito Político e Econômico, especialista em Direito Constitucional e em Direito Processual Civil. Bacharela em Direito e Ciência Política, pesquisa a articulação entre classe, raça e gênero na sociedade brasileira.