Haddad e o PT: Sobre Narrativas e Purismos de Ocasião

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O candidato do PT derrotado no segundo turno a presidência, Fernando Haddad, deu sua primeira entrevista pós eleição para a Folha de São Paulo. Vale fazer uma análise do que foi dito e também do que não foi dito, do evidente às entrelinhas. Nesse momento em que o campo progressista vai se redesenhando no pós-lulismo, é importante entender como o PT se vê nesse tabuleiro e qual narrativa o mesmo começa a encampar.

O primeiro ponto que fica bastante evidente é a continuidade da aparição do ex-presidente Lula. Duas ideias continuam sendo muito fortes e recorrentes: a de que ele foi o maior presidente da História do país (Haddad fala em “maior legado reconhecido pelo país”), e a outra, que se tivesse concorrido contra Jair Bolsonaro, teria ganhado as eleições.

O primeiro ponto é facilmente desconstruído a luz da História. Acredito que nenhum historiador sério colocaria Lula no posto ao qual foi alçado pelo PT e por Haddad, visto que não há qualquer legado institucional ou mesmo estrutural para o país do período lulista. Muito diferente, por exemplo, do caso do presidente Getúlio Vargas, que sob sua liderança colocou o Brasil na modernidade tendo como horizonte um projeto nacional de desenvolvimento muito claro. Até hoje o legado varguista é o grande alvo da sanha entreguista neoliberal. Os grandes feitos do período lulista, que devem ser reconhecidos, não podem vir dissociados de sua base frágil, um arranjo conjuntural financiado pelo boom das commodities que propiciou lucros astronômicos para a elite financeira e programas de redistribuição de renda para os mais pobres. Passado o “boom”, muitas das conquistas já se esvaíram como areia pelos dedos da população mais pobre, vide o retorno do crescimento da desigualdade e da pobreza no país desde 2015. E a elite financeira? Essa continua bem e intocável, assim como foi durante os governos petistas.

Outro ponto a ser destacado na fala de Fernando Haddad: Ciro Gomes e o PDT. Aqui é muito curioso como o ex-prefeito inverte os atores de lugar para tentar reescrever o que foi a história das últimas eleições: para ele só não houve uma coalizão entre PDT e PT porque “Ciro não quis”. Vale lembrar que a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, disse com todas as letras que Ciro não passava no PT “nem com reza brava”. Também é fundamental recordar, frente a toda tentativa de escamoteamento da história, que foi a cúpula petista quem manobrou para garantir a neutralidade nacional do PSB, rifando Marília Arraes em Pernambuco e implodindo a candidatura de Márcio Lacerda em Minas Gerais (manobra que no fim das contas, entregou o estado com o segundo maior colégio eleitoral do país para o NOVO…). Dentro dessa equação também vale citar o achaque ao PCdoB, que segundo as lideranças petistas não teria chances de superar a cláusula de barreira em eventual aliança com o PDT. Resultado: Manuela D´Ávila ficou de escanteio a maior parte da campanha e o partido não alcançou a cláusula de barreira. Ou seja, por não se submeter, Ciro foi boicotado e isolado pelo PT de todas as formas possíveis. É a isso que ele se refere quando fala que foi “traído miseravelmente”.

Ainda em tempo: tem sido bastante recorrente nos discursos petistas, seja de lideranças ou da blogosfera ligada ao partido, a ideia, que faz parte de um esforço em conjunto para tentar desconstruir a figura de Ciro Gomes, que o mesmo só agiria pensando em seu “projeto pessoal de poder”. Curioso é que, pela entrevista de Haddad, por um ato falho talvez, fica claro que o problema não seria esse suposto projeto pessoal, mas sim o fato dele não ter o aval do PT. A grande questão é, como sempre, a hegemonia.

Aliás, vale ressaltar que nenhuma das lideranças da centro esquerda que estão formando blocos sem o PT na Câmara e no Senado o fazem obrigados pelo Ciro ou pelo PDT, pelo contrário, o que acontece é que essas lideranças também entendem que é preciso nascer uma nova esquerda no Brasil, sem o dirigismo petista. Ainda que indiscutivelmente o PT continue sendo o maior e mais importante partido da centro esquerda, a sua liderança não é mais uma unanimidade.

Na mesma toada é possível entender o ataque de Haddad ao PDT, ao dizer que o partido é “de esquerda, pero no mucho”, se referindo ao fato de candidatos a governador pelo partido terem declarado apoio a Bolsonaro. Justo o PT, o artificie mor do pragmatismo a todo custo, que não poucas vezes debandou para o fisiologismo puro e simples, replicando, meio fora de tempo, um discurso purista. E cobrando purismo dos outros, o que é pior. Quem não se lembra do próprio Haddad recebendo afagos do ultradireitista Paulo Maluf em 2012? O próprio Jair Bolsonaro foi da base governista do PT quando ainda era do PP, do mesmo Maluf. Podemos falar de Eunício, Renan, Temer…enfim. É claro que essa questão do PDT é uma contradição com a qual o partido terá de lidar, mas ouvir cobranças nesse sentido de uma liderança do PT beira o surrealismo. O fato é que na nova narrativa o petismo baterá na tecla, incessantemente, de que não há esquerda sem ele. Quando questionado sobre o hegemonismo, Haddad disse com todas as letras: “O PT é um player no sentido pleno da palavra. É um jogador de alta patente, que sabe fazer política. Sabe entrar em campo e defender o seu legado”. Para bom entendedor, meia falta de autocrítica basta.

Por fim, o PT continuará apostando na “guerra híbrida” como carro chave da sua nova narrativa, que há tempos vem servindo de cortina de fumaça para a sua falta de projeto estratégico para o país. A luta será contra a “agenda cultural regressiva” que servirá de apoio para as reformas neoliberais do novo governo. A defesa dos direitos sociais e civis será o mote da atuação petista na oposição ao governo Bolsonaro. Um mote genérico baseado na defesa de determinados grupos e que não angariou o apoio eleitoral pretendido. Tão pouco parece ser uma narrativa interessante para penetrar nas fileiras neopentecostais como pretende o ex-presidenciável.

Para um partido e um ex-candidato que tanto se vangloriam do seu legado e da votação que obtiveram na última eleição (ainda que aquém de votações do próprio partido em outros anos) a narrativa proposta pelo PT parece muito aquém das necessidades do país e dos desafios para o próximo período, ainda quem a empáfia continue intacta. A ver nos próximos capítulos o resultado dessa combinação.