(Des)Caminhos da Política Econômica e o Imperativo do Planejamento Estatal Participativo

A pandemia desconstruiu o discurso hegemônico segundo o qual o livre mercado era a única instituição eficiente na alocação de recursos da sociedade. Tornou-se um consenso o reconhecimento da centralidade do Estado como um ator ordenador dos recursos e da ação coletiva. A questão, portanto, não é discutir se o Estado deve, ou não, organizar o processo econômico, mas em que medida a ação estatal será democraticamente controlada – via concertação – na restauração da ordem econômica e dos processos produtivos.
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Apesar da “surpresa” com a nova pandemia, sobretudo pela propagação veloz e letal da COVID-19, a história da humanidade já passou por situações semelhantes nas últimas décadas[1] com H1N1, Ebola e Sars. Pandemias como essas estavam previstas para o século XXI, a era da economia do conhecimento e da informação. Diversos ramos da ciência alertaram para a necessidade de ações planejadas e de pesquisas direcionadas a prevenção e combate de situações semelhantes à que vivemos. Ademais, temos ambientes propícios ao aparecimento das pandemias, em nações desenvolvidas ou em desenvolvimento, pois as políticas neoliberais (regulação e austeridade[2]) dilataram a degradação ambiental, fragilizaram a saúde pública, reduziram verbas de pesquisas cientificas de fármacos e vacinas, ignoraram as condições insalubres de moradias, com baixos padrões sanitários para a maioria da populações mundial (água potável, coleta de lixo e tratamento de esgoto).

Portanto, a guerra sanitária travada nos dias atuais não pode ser inserida na agenda de “imprevisibilidade” do Estado e do poder econômico privado, mas, sim, precisa das respostas da ciência e da sociedade, a fim de superar e amainar as inúmeras dificuldades que surgiram. O Direito, por sua vez, também é chamado para apresentar as suas contribuições, porque a legislação existente não se “molda”, em geral, à situação de interrupção abrupta, parcial ou total, em uma escala inédita, da atividade econômica, especialmente dos agentes do sistema produtivo e financeiro, gerando óbitos, recessão e impossibilidade no cumprimento de contratos (aluguel, consumo, trabalho) e de parte da ordem jurídica (pagamentos de tributos por pequenas/média empresas).

Nas crises originadas por guerras, superprodução, especulações financeiras ou pandemias, um dos ramos sempre demando é o “indispensável Direito Econômico”[3], pois versa sobre o tratamento jurídicos das políticas econômicas[4]. Aliás, no século passado, ele foi chamado de Direito de Guerra por apresentar medidas objetivando reduzir os efeitos socioeconômicos e a recuperar das nações após conflitos armados, como no período do New Deal, depois da Primeira Guerra Mundial, e dos Planos Marshall e Monnet, no pós-Segunda Guerra Mundial.

Apesar de não termos números consolidados no Brasil quanto aos efeitos socioeconômicos da COVID-19, o vírus vem contaminando a economia real, gerando tensões, podendo significar rupturas drásticas ou janelas de oportunidades com o objetivo de se estabelecer outras políticas sanitárias, socioeconômicas, tecnológicas e ambientais. Especificamente, no plano nacional, podemos descortinar, inicialmente, três possíveis cenários de serem trilhados quanto as políticas econômicas.

O primeiro cenário, há dilatação dos conflitos sociais, devido às falências empresariais, desemprego, desarticulação do setor agrícola[5], fome e com a ruptura da ordem institucional existente pode resultar em um outro paradigma de produção social e de Estado com a supressão das propriedades privadas dos meios de produção e a sua apropriação coletiva[6]. Hipótese remota, em face do atual estágio das lutas entre capital e trabalho nos planos nacional e internacional.

O segundo cenário, há suspensão temporária das políticas econômicas do neoliberalismo de austeridade, até se amainar a crise sanitária e econômica, com o seu retorno posterior, por meio de políticas públicas mais radicais de fortalecimento do capital financeiro, no qual o ajuste fiscal seria duplamente brutal, com cortes das verbas públicas de saúde, laboratórios e universidades estatais destinadas ao desenvolvimento de pesquisas cientificas de novas vacinas e de fármacos, bem como a retirada de recursos dos demais serviços públicos (educação, transportes, segurança) e rebaixamento de direitos sociais, novas privatizações do patrimônio público e contenção de investimentos em prol do tecido social brasileiro. Hipótese possível, devido ao envolvimento das elites econômicas e políticas nacionais ao projeto de austeridade do capital financeiro internacional de priorização total do pagamento da dívida pública e da nossa constante dependência econômica, tecnológica e cultural[7].

Ainda no segundo cenário, o Estado policialesco será ampliado com outros sacrifícios dos direitos fundamentais, independentemente da desconstrução formal da ordem jurídica democrática, pois apenas os canais de “violência simbólica”[8], que reafirmam a possibilidade da efetivação do “paraíso de consumo” não serão suficientes para barrar as reivindicações civilizatórias dos milhares de excluídos.

O terceiro cenário, a aposta dos autores, seria o resgate do projeto original da constituição brasileira de 1988 de uma sociedade democrática, plural e transformadora em face das pressões sociais resultantes das políticas econômicas neoliberais de regulação e austeridade que inviabilizam a reversão do quadro de injustiça social e dependência nacional, comprovada e agravada na pandemia.

Ademais, crises não podem dar causa para rasgar, bloquear ou inverter[9] os comandos diretivos da Constituição brasileira de 1988. Ela apresenta ditames jurídicos capazes de enfrentar e superar as graves dificuldades, tais como: o poder de desapropriação do Estado de bens e de empresas necessários a sociedade (art. 5, XXIV da CR); controle de preços em face do abuso do poder econômico privado (art. 174 da CR), ampliação/reencampação de serviços públicos vitais (art. 175 da CR), criação de estatais[10] em atividades econômicas estratégicas (art. 173 da CR), investimentos públicos socorrendo financeiramente trabalhadores, autônomos, desempregados, empresas, cooperativas, entes da federação (ar. 165 da CR), etc.

Contudo, todas as medidas de política econômica, durante ou após a pandemia, devem ser planejadas[11] (art. 174, caput, da CR) e articuladas com a participação da sociedade civil (art. 14 da CR). Em uma nação com tanta multiplicidade e diferenças, os entes federativos devem elaborar e executar planos globais e setoriais de enfrentamento à COVID-19 e suas consequências. Com a participação, pelos meios virtuais, devido a necessidade do isolamento social, dos representantes dos segmentos envolvidos, tais como: sindicatos de trabalhadores, entidades representativas das empresas (grande, medias, pequenas e micros), representações de categorias profissões (médicos, enfermeiros, advogados, engenheiros, autônomos, economistas, ambientalistas, cientistas) e a própria administração pública.

É imperativo o diálogo em instancias de concertação (Comitês ou/e Câmaras Globais e setoriais) a fim de elaborar e executar os planos e as respectivas medidas socioeconômicas para amainar e reestruturar a sociedade brasileira durante e após a pandemia. Em um Estado de dimensão continental, onde as demandas são distintas, as ações devem abordar: tratamento tributário e capital de giro de acordo com o tamanho e o setor das empresas e das cooperativas; canais de preservação da renda dos trabalhadores formais e informais de acordo com suas peculiaridades próprias; tratamento fiscal adequado a Estados, Distrito Federal e Municípios, uma vez que seus cofres podem contar com insuficiências de recursos.

Jamais deve-se abdicar da possibilidade de construir um Estado efetivamente democrático e socialmente justo; a crise é uma janela de oportunidade para as transformações, embasadas nas experiências passadas e presente do Direito Econômico e da sociedade, relativas ao planejamento e as instancias de concertação do Brasil e no mundo. Afinal, a democracia e os direitos sociais nunca foram entraves ao desenvolvimento; a desigualdade, agravada pelos anos de austeridade e pela pandemia é que embaraça as possibilidades de justiça social. O momento é grave e exige democracia, articulação e solidariedade.

A Itália, uma das nações mais atingidas pela COVID-19, ainda que tardiamente, está muitos passos à frente neste sentido, pois por meio das instâncias de concertação, Estado e os diversos segmentos organizados da sociedade (capital, trabalhos, ambientalistas, profissionais da saúde, etc.) fixaram políticas socioeconômicas planejadas democraticamente e partilharam responsabilidades. Em nome da relevância dos empregos, do mercado interno e da soberania econômica pactuaram que o Estado irá arcar com parcela significa dos salários dos setores privados, a outra parte menor as empresas pagam e os trabalhadores abrem mão de uma pequena parte (em torno de 5%), além de diversas medidas como o fundo de socorro aos trabalhadores em tempo de crise[12].

A pandemia desconstruiu o discurso hegemônico segundo o qual o livre mercado era a única instituição eficiente na alocação de recursos da sociedade. Tornou-se um consenso o reconhecimento da centralidade do Estado como um ator ordenador dos recursos e da ação coletiva. A questão, portanto, não é discutir se o Estado deve, ou não, organizar o processo econômico, mas em que medida a ação estatal será democraticamente controlada – via concertação – na restauração da ordem econômica e dos processos produtivos.

Davi Augusto Santana de Lelis
Professor de Direito Econômico da UFV

Giovani Clark
Professor de Direito Econômico da UFMG e da PUC Minas

Leonardo Alves Corrêa
Professor de Direito Econômico da UFJF

Samuel Pontes do Nascimento
Professor de Direito Econômico da UFPI

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Notas:

[1] DAVIS, Mike. A Crise de Coronavírus é um Monstro Alimentado pelo Capitalismo. IN: DAVIS, Mike, et. al. Coronavírus e Luta de Classes. Terra Sen Amos: Brasil, 2020 p, 05-12.

[2] CLARK, Giovani, CORREA, Leonardo, NASCIMENTO, Samuel. O Direito Econômico, o pioneirismo de Washington Peluso Albino de Souza e o desafio equilibrista: a luta histórica de uma disciplina entre padecer e resistir. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 301-324, jul./dez. 2018.

[3] COMPARATO, Fábio Konder, O Indispensável Direito Econômico. Revista dos Tribunais nº 353, São Paulo, RT, 1968, pp. 14-26.

[4] SOUZA, Washignton Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 6ª edição. São Paulo: LTr, 2017.

[5] LELIS, Davi Augusto Santana de. Ensaios sobre a Atuação Estatal: a política pública capaz da alteridade e uma análise do PRONAF como política pública da ética primeira. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2019.

[6] PRADO JÚNIOR. Caio. FERNANDES, Florestan. Clássicos da Revolução Brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2005.

[7] FURTADO, Celso. O Capitalismo Global. 5 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

[8] SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o pais se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.

[9] BERCOVICI, Gilberto. MASSONETTO, Luís Fernando. A Constituição Dirigente Invertida: a Blindagem da Constituição Financeira e a Agonia da Constituição Econômica. Boletim de Ciência Econômica, Coimbra, 2006, p. 3-23 – separata.

[10] OCTAVIANI, Alessandro, NOHARA, Irene Patrícia. Estatais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

[11] CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. Curso Elementar de Direito Econômico. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2014; GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). 16 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.

[12] Sobre a concertação na Itália, vide a entrevista da Profa. Célia Kerstenetzky ao Canal IE, dirigida pela Profa. Esther Dweck.