A cruzada antinacional contra a feijoada

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Nada mobiliza mais os ideólogos do liberalismo brasileiro que a tarefa de desconstruir os símbolos nacionais. À direita, tudo o que vem do Brasil é brega, artificial, uma cópia pirata do que existe no primeiro mundo, vulgarizada pelos selvagens caipiras de Pindorama. À esquerda, tudo o que é brasileiro é sangrento, autoritário, excludente, eurocêntrico, apenas expressão de um roubo que celebra a humilhação dos derrotados da história.

Nessa cruzada, a cavalaria liberal, atacando por ambos os flancos, golpeia tudo o que remete ao verde e amarelo: da bandeira pátria ao idioma, das estátuas às festividades, dos feriados às tradições populares, da literatura ao cinema, da poesia ao paladar.

Nesse último campo de batalha, o gosto do Brasil está sob ataque. E não é de hoje. Já abordamos aqui uma vítima de outrora. O alvo do momento é a feijoada.

Cercada por todos os lados por seus desmistificadores, a feijoada virou apenas uma cópia malfeita do cassoulet, receita roubada dos civilizados franceses, ou, pior ainda, uma apropriação cultural dos africanos por branquelos que não sabem sambar.

A cruzada antinacional contra a feijoada

Ainda há aqueles arqueólogos que escavam mais fundo, remetendo ao império romano a criação do prato. Os espanhóis, com sua fabada, também são apontados como precursores dessa ideia tão inusitada: cozinhar feijão com pedaços de porco.

A cruzada antinacional contra a feijoada

Grandes insights mudam a história da humanidade, mas nem sempre é possível determinar quem os teve primeiro. Galileu Galilei ficou famoso pela criação do telescópio, mas consta que quem o inventou de fato teria sido Hans Lippershey. Isaac Newton e Gottfried Wilhelm Leibniz duelaram por anos pelo reconhecimento da autoria do Cálculo Infinitesimal. Charles Darwin e Alfred Russel Wallace teriam entrado em acordo para dividir os louros da criação da teoria da evolução das espécies.

Porém, diante de tantas contendas no campo das invenções, em uma delas há total consenso: o primeiro ser humano que teve a espantosa ideia de misturar feijão com carne de porco não era do Brasil. E de posse dessa incontestável conclusão, só há um veredicto possível: a feijoada não é brasileira. Q.E.D.

Quer mais provas? Pois os cruzados antinacionais as têm de pronto: em um cardápio de 1833, de um dos mais antigos restaurantes do país, o elegante Hôtel Théatre, de Recife, o prato aparecia com o nome de “feijoada à brasileira”. Fim de papo. Mais um mito nacional que cai por terra, trazendo a paz necessária à modernização do país com a expansão das franquias de hamburguerias gourmet.

Algum audaz nacional, desavisado das regras da lógica aristotélica, ainda poderia levantar questionamentos ilógicos. Por exemplo, que o “nosso cassoulet”, diferente dos outros, é feito de feijão preto e é acompanhado de arroz, laranja, couve e farofa, criando o colorido que Getúlio Vargas asseverou como análogo à formação étnica do Brasil, em seu famoso elogio à iguaria nacional.

Além disso, um insistente Policarpo Quaresma ainda poderia bradar que a feijoada aqui não é apenas um prato. A feijoada é uma festa!

Talvez os pobres intelectuais orgânicos do liberalismo, submetidos à clausura de seus gabinetes acadêmicos, nunca tenham ido a uma. Pois descrevo o campo para futura pesquisa empírica: com gente tocando samba em volta, uma panela gigante fervilha no meio do quintal, onde o feijão adentra e amolece as partes do porco, que pode ter sido abatido no mesmo local, no dia anterior. Gente, muita gente esperando o demorado almoço. Ao fundo, gritarias na mesa de truco – alguém deve estar com zap! Cerveja gelada, caipirinhas mil, danças e risos sob o sol de um merecido sábado de descanso.

O cheiro da feijoada toma completamente o local, atiçando o apetite de todos. Os mais chegados da casa podem pescar algum pedaço da carne boiando no feijão com pretexto de aferirem o tempero.

Tudo pronto, começa o banquete. Banquete [Συμπόσιον], aliás, uma apropriação cultural dos antigos gregos, já que ninguém antes na história da humanidade deve ter tido essa ideia, afirmam alguns historiadorXs.

No caso da “cópia” brasileira, nosso banquete de feijão preto, bacon, linguiça, pé, orelha, focinho, rabo e lombo de porco, arroz, farofa, couve, laranja e pimenta, regado a cerveja e caipirinha, ao som do último samba, alimenta a alma e desafia o corpo. Desafio que, sob o peso do soft power brasileiro, romanos, franceses, espanhóis, gregos e todos os demais povos do mundo ainda hão de desfrutar.