Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, o conflito entre os dois países foi finalmente deflagrado. Porém, como e quando surgiu a crise que levou a isso?
Há várias respostas possíveis, com datas e acontecimentos diferentes. Decidimos começar a história do conflito Ucrânia-Rússia nos protestos que ocorreram entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014.
Os eventos, conhecidos como a Primavera Ucraniana, podem ser considerados o início da crise atual do país, culminando na deposição e fuga do presidente Viktor Yanukovych e na anexação da Crimeia pela Rússia em 2014.
Por coincidência é o mesmo ano das Jornadas de Junho no Brasil.
O próprio presidente da Rússia, Vladimir Putin, afirmou em 24/02/22 que seu objetivo é proteger sua população que vem sendo alvo de abuso e genocídio pelo regime de Kiev por oito anos, ou seja, desde 2014. Vamos investigar então o que aconteceu.
Sabemos que toda a história tem dois lados, mas geralmente somos apresentados a apenas uma versão e não temos a oportunidade de compará-las. Porém, neste pequeno artigo faremos exatamente isso.
Vamos comparar a narrativa de um documentário pró-União Europeia com a interpretação de um documentário pró-Rússia, para assim ouvirmos o outro lado e investigarmos melhor os pontos cegos da primeira versão.
Acreditamos que “Winter on Fire” apresenta os eventos de 2013-2014 como uma luta entre Bem e Mal e dá um tom moral a eventos geopolíticos complexos.
O que veremos neste artigo:
- Resumo dos documentários.
- Como o ponto de vista vende uma história.
- A União Europeia como bem incontestável.
- Protestos espontâneos e apartidários.
- Final feliz.
- Desdobramentos do conflito
- Agradecimentos e referências.
1. Resumo dos documentários
Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom
O primeiro documentário, “Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom”, foi produzido pela Netflix em Outubro de 2015, concorrendo ao Oscar de melhor documentário em 2016.
Os protestos da praça Maidan em Kiev, capital da Ucrânia e epicentro da revolta, são retratados como uma revolução popular contra o governo corrupto e autoritário de Yanukovych.
De acordo com essa versão, o presidente havia recusado um acordo comercial com a União Europeia devido a seu alinhamento com a Rússia, ainda que fosse a vontade geral da população.
As manifestações pacíficas na maior praça da capital, então, evoluem para repressão policial, conflito armado e até mortes de civis — eventos registrados vividamente ao longo de todo o filme.
Ukraine on Fire
O segundo documentário, “Ukraine on Fire”, foi realizado pela Another Way Productions e pelo cineasta Oliver Stone, incluindo suas entrevistas com o ex-presidente Yanukovych e o presidente russo Vladimir Putin. Ele estreou em junho de 2016 e está presente no Youtube e no Prime Video.
Sua versão dos acontecimentos descreve os protestos como uma manipulação bem-sucedida feita pela oposição parlamentar ao governo, grupos nacionalistas de extrema direita, ONGs e o Departamento de Estado dos EUA, país interessado no realinhamento político da Ucrânia.
Seu objetivo seria destituir um presidente pró-Rússia, eleito democraticamente, por um governante pró-União Europeia e OTAN, a organização militar composta sobretudo por países da Europa Ocidental e os EUA.
Segundo “Ukraine on Fire”, isso foi atingido fora das vias institucionais, como novas eleições ou impeachment, sendo na prática um golpe de Estado.
2. Como o ponto de vista vende uma história
Winter on Fire (WoF), a narrativa pró-Ocidente, nos apresenta os acontecimentos através dos relatos de vários participantes do conflito, como é comum em documentários.
Porém, quem eles são constitui um poderoso recurso retórico: estudantes, médicos, advogados, militares reformados, religiosos, comerciantes, de todas as idades, gêneros e crenças.
A arquiteta Anna Levitanskaja conta suas impressões sobre a marcha dos milhões em direção à praça Maidan, no início dos protestos:
“Havia pessoas com carrinhos de bebê, idosos, deficientes com muletas… Foi incrível! Percebemos que poderíamos mudar alguma coisa”. (17min)
Em suma, são apenas pessoas comuns, honestas e bem-intencionadas que queriam exercer seus direitos civis.
Em outro momento, o manifestante Dmytro Holubnychyy, de 16 anos, é filmado por um colega ao falar com a mãe pelo telefone, logo antes de um conflito iminente com a polícia, em meio a destroços e barricadas:
“Oi, acabei de acordar. Mãe, quero dizer uma coisa. Quero que saiba… Mãe, eu te amo” (1h22min).
Entretanto, o WoF não revela que a estampa na camisa de Dmytro é o rosto de Stepan Bandera, um líder ucraniano do século XX da Organização de Nacionalistas Ucranianos.
Como mostra o outro documentário, “Ukraine on Fire”, a Organização era um grupo de extrema-direita que colaborou ativamente com os nazistas a partir de 1941, chegando a compor dois batalhões ucranianos sob o comando do serviço de inteligência militar da Alemanha, Abwehr.
O grupo de Bandera era profundamente anti-semita, anti-comunista e ficou conhecido pela perseguição e massacre de inúmeros civis judeus e poloneses.
Não sabemos se o jovem manifestante Dmytro Holubnychyy, de 16 anos, entende plenamente quem foi Stepan Bandera, porém ele não é o único a usar essa estampa nos protestos de Kiev.
Aliás, um dos símbolos da Organização de Bandera aparece muitas vezes entre os manifestantes da praça Maidan: a espada com asas laterais, com uma bandeira preta e vermelha ao fundo.
A omissão dos símbolos fascistas somada ao perfil das testemunhas mostradas no filme serve para que nós, espectadores, empatizemos com a narrativa de WoF.
Inconscientemente, passamos a ver os eventos a partir do ponto de vista deles e, assim, a comprar sua interpretação dos fatos.
3. A União Europeia como bem incontestável
O gatilho para os protestos da praça de Maidan em Kiev foi a não-assinatura do acordo de livre comércio entre Ucrânia e União Europeia (UE), prometido pelo próprio Yanukovych.
Nas palavras do cirurgião Valerii Zalevskiy:
“As pessoas estão indignadas não só porque o momento é difícil, mas porque roubaram o futuro de nossos filhos”(3min)
Segundo “Winter on Fire” (WoF), o então presidente Yanukovych não assinou o acordo por conta do seu alinhamento com a Rússia.
Porém, podemos nos perguntar:
- Qual a porcentagem de ucranianos apoiando essa medida?
- Quais os benefícios do livre comércio entre Ucrânia e países como Alemanha e França, membros fortes da UE?
- Quais as desvantagens para as empresas, o mercado de trabalho e o governo ucranianos?
- E que perdas comerciais e diplomáticas a Ucrânia teria com a Rússia se aderisse ao livre comércio com a UE?
Nenhuma dessas questões é sequer abordada. Em WoF, o livre comércio com a União Europeia aparece como um bem incontestável e como a única saída para a economia do país.
4. Protestos espontâneos e apartidários
Winter on Fire (WoF) retrata os eventos de 2013–2014 como espontâneos e apartidários.
I — Apartidários
Para justificar o tom apartidário, vemos o relato do jornalista Mustafa Nayyem sobre um episódio que ocorreu nos primeiros dias de protesto:
“Vitali Klitschko (da oposição parlamentar) veio à Maidan quando viu aquela multidão se reunindo ali. Ele trouxe um caminhão com a bandeira de seu partido político, mas as pessoas o obrigaram a tirá-la”. (5min)
Em outras palavras, os participantes de Maidan não permitiram que nem mesmo a oposição parlamentar ao governo ganhasse capital político às custas das manifestações.
Entretanto, o sentimento de antipolítica não se mantém até o fim. Podemos ver bandeiras ou insígnias dos partidos Svoboda, Setor Direito e Reunião Nacional Ucraniana em vários momentos: 17min, 42min, 1h02min, por exemplo.
Além disso, ao assistirmos “Ukraine on Fire” (UoF) de Oliver Stone, vemos o envolvimento e apoio explícitos de políticos e representantes americanos nos protestos. Entre eles:
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- O ex-candidato à presidência e então senador republicano, John McCain;
- O senador Chris Murphy;
A secretária assistente para assuntos europeus e eurasiáticos, Victoria Nuland;
- O embaixador americano Geoffrey Pyatt;
Em algumas cenas, vemos os dois senadores discursando em gesto de apoio aos manifestantes, o que acirrava um conflito em um território alheio aos Estados Unidos.
Em um trecho da entrevista, o próprio Yanukovych relata como o embaixador Pyatt recebia visitas dos envolvidos em Maidan a todo o tempo.
II — Espontâneos
Winter on Fire faz parecer que o espontaneísmo dos manifestantes por si só conseguiu organizar os protestos. Não mostra de que forma um ato político convocado no Facebook conseguiu se estruturar, evoluir e se tornar a maior onda de protestos da Ucrânia do século XXI até então.
Os grandes eventos políticos que ocorreram entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014, em Kiev, dificilmente poderiam ter ocorrido sem liderança, treinamento e financiamento.
Algumas perguntas pertinentes que poderiam ter sido feitas pelo documentário para se contar uma história mais realista e justa, são:
- Quem financiou a infraestrutura dos protestos na praça Maidan?
- Quem treinou o “exército popular” e construiu as barricadas?
- Quem coordenou o grupo AutoMaidan, as pessoas de carro que circulavam ao redor da praça e ajudavam os outros manifestantes?
- Quem sustentou economicamente as pessoas para ocuparem a praça durante os 90 dias de protesto, sobretudo as ditas “unidades de defesa”?
A todas essas perguntas o documentário responde que era apenas a iniciativa dos próprios manifestantes ou se mantém em silêncio. As pessoas simplesmente sabiam o que fazer e tem-se a impressão de não haver líderes.
Essa ideia é posta em xeque quando Sergey Coba, reconhecido apenas como “membro de AutoMaidan”, toma a liderança em um palanque e ameaça abertamente o presidente do país:
“Nós, pessoas comuns, falando aos políticos atrás de mim: Yanukovych não será o presidente por mais um ano! Amanhã às 10h ele deve renunciar! (…) Falo em nome da unidade de defesa à qual meu pai também se juntou. Se amanhã às 10h não for feita uma declaração sobre a renúncia de Yanukovych, juro que partiremos numa ofensiva armada!” (1h28min)
A incitação ocorre no 90° dia de protestos e poderia ser facilmente interpretada como ilegal, criminosa e uma tentativa de golpe de Estado. Porém ela não é alvo de nenhuma crítica no documentário.
5. Final feliz
O documentário pró-Ocidente se encaminha para o fim quando o então presidente Viktor Yanukovych foge de Kiev em direção à Rússia, onde recebe asilo político.
Somos deixados com um final melodramático típico, no qual o espectador acompanha a jornada dos heróis da nação até sua vitória e pacificação.
Todo o sofrimento do Bem contra o Mal, dois lados bem delimitados, é justificado e redimido em um encerramento emocionante.
Esse tipo de solução para uma história tão complexa é no mínimo pobre. Nas relações internacionais, assim como nas humanas, não existem mocinhos e bandidos. Infelizmente, ambos os documentários (pró-Rússia e pró-Ocidente) usam essa estratégia para encerrar suas narrativas.
Em 2014, os protestos de Maidan se espalharam para o leste da Ucrânia, levando instabilidade política a uma região estratégica: a península da Crimeia.
Isso, por sua vez, levou a um plesbicito, à independência do território e sua posterior incorporação pela Federação Russa.
“Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom” apresenta esses eventos como uma invasão russa, uma reação autoritária contra os protestos legítimos da população, que queria liberdade e alinhamento à UE.
“Ukraine on Fire” retrata a anexação da Crimeia como expressão legítima de ucranianos que se identificavam etnica e culturalmente com a Rússia. O país, por sua vez, teria protegido a população de uma onda de violência vinda de agitadores neofascistas.
6. Desdobramento atual
Mas na realidade os conflitos se dão por uma série de interesses políticos, econômicos, culturais e militares, como o avanço da OTAN e vontade russa de reaver territórios da antiga URSS.
Em outras palavras, a régua moral geralmente não é a melhor ferramenta. Não devemos acreditar na pureza de qualquer um dos lados, o que vale para o desdobramento atual do conflito.
Segundo a Rússia, a operação militar na Ucrânia é apenas uma reação contra radicais que assumiram o poder via golpe de estado em 2014 e ameaçam a segurança russa.
Segundo o Ocidente (EUA, Reino Unido e os países do UE sobretudo), a operação é uma invasão não provocada, um caminho de derramamento de sangue e destruição, uma violação da lei internacional e da soberania de outro país.
O discernimento de saber que não existem Bem e Mal absolutos só vem à medida em que ouvimos os dois lados e exercemos o pensamento crítico. No final das contas, os julgamentos morais não nos ajudam a entender os conflitos geopolíticos, que são guiados por outra lógica.
7. Agradecimentos
Agradecimentos especiais ao canal https://www.instagram.com/geopoliticahoje/ que indicou os dois documentários e instigou seus seguidores a formar sua própria opinião sobre um tema delicado e complexo.
- https://disparada.com.br/integra-discurso-de-vladimir-putin-sobre-a-ucrania/
- https://www.cnbc.com/2022/02/24/leaders-of-us-uk-eu-and-canada-condemn-russian-invasion-on-ukraine.html
*As fontes das imagens encontram-se em suas respectivas legendas.