Contra a covid-19, o Brasil precisa colocar em pauta a licença compulsória

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A possibilidade de o Brasil ter dificuldade no acesso a vacinas e tratamentos contra o coronavírus (covid-19) desenvolvidos por outros países, reforça a necessidade do debate público sobre o licenciamento compulsório e o sistema nacional de patentes. De início, cabe ressaltar que o Brasil, assim como a totalidade das nações da periferia latino-americana, não se constituiu como uma civilização industrial. Na verdade, mantendo a sua estrutura produtiva pouco complexa e a sua inserção subordinada na divisão internacional do trabalho, o país reafirmou-se como uma “grande fazenda” com o emprego de políticas liberalizantes levadas a cabo a partir dos anos 1990, designação a ele atribuída por sofrer com os efeitos dinâmicos da especialização primário-exportadora.

Sabe-se que a ausência de uma economia industrial e a carência de uma incorporação do progresso técnico-científico fizeram com que o Brasil reforçasse a necessidade de absorver tecnologia de países de industrialização avançada, a exemplo de produtos farmacêuticos. Agravando esse cenário, diante de posicionamentos recentes do presidente da República e do momento desolador da diplomacia brasileira – que sob o governo Bolsonaro deixou o multilateralismo de lado e inclinou-se à agenda ideológica –, o país não foi convidado para lançar a “Colaboração Global para Acelerar o Desenvolvimento, Produção e Acesso Equitativo a diagnósticos, tratamento e vacina contra o covid-19”. Em abril, Bolsonaro chegou a acusar a Organização Mundial de Saúde (OMS) de instigar a masturbação infantil enquanto outros governos buscavam financiamento para o desenvolvimento de instrumentos que contribuam no enfrentamento da pandemia.

Com o risco de o Brasil não ter prioridade para receber a eventual vacina e força política para interferir na definição de seu preço, a ineficácia social e econômica do sistema nacional de patentes deve ganhar notoriedade no debate público. Resumidamente, tem-se que, com o arcabouço patentário ancorado na lei n° 9279 de 1996, instalou-se, no país, uma estrutura jurídica de proteção de propriedade intelectual no setor farmacêutico que não incentivou investimentos em pesquisa e inovação em medicamentos para as doenças que afetam o povo brasileiro, resultados que poderiam contribuir para a nossa soberania tecnológica. Na verdade, fez com que o Brasil dependesse de produtos desenvolvidos por grandes companhias farmacêuticas que se interessam somente pela lucratividade, mormente as transnacionais, as quais decidem por preços abusivos e não equivalentes ao custo real de produção. Ou seja, interesses particulares que se sobressaem em detrimento de direitos fundamentais, como o direito constitucional da saúde, e o mercado interno brasileiro.

Aliás, conforme noticiado por Bruna de Lara, em matéria publicada pela The Intercept Brasil, a multinacional americana Gilead Sciences desenvolveu um medicamento denominado como Remdesivir, que foi aprovado para ser utilizado contra a covid-19 em casos excepcionais nos Estados Unidos e no Japão, cujo tratamento pode chegar a US$ 4,5 mil – preço incompatível com a realidade brasileira. Ainda segundo a jornalista, o Brasil, por ser tido como um país de renda média, foi excluído do rol de 127 países selecionados pela Gilead para receber o genérico, haja vista a medida dirigir-se somente àqueles que são considerados de renda baixa e média-baixa. Entretanto, a despeito de ser um país de renda alta, os Estados Unidos foram prestigiados com tal seleção.

Portanto, nota-se a necessidade de preparação de um clima de pressão do povo brasileiro sobre a classe política para que seja decretada a licença compulsória, caso o Brasil tenha dificuldade no acesso à eventual vacina ou a quaisquer outros medicamentos que sejam desenvolvidos e contribuam, de maneira efetiva, no enfrentamento do coronavírus. Resumidamente, este instituto jurídico deve ser empregado quando há necessidade de antecipar a expiração da patente, processo a partir do qual a coloca em domínio público, aumentando sua oferta e diminuindo seus custos.  Apesar da patente ser um título jurídico que assegura a seu titular a exploração econômica de forma exclusiva e temporária de sua invenção, na atual crise sanitária do coronavírus devemos, desde então, nos colocar contra os interesses individualistas da indústria farmacêutica, almejando o emprego da licença compulsória a favor do interesse nacional.

Contra a covid-19, o Brasil precisa colocar em pauta a licença compulsória
Imagem: DW Brasil