A corrente de opinião identitária: atores e performances

A corrente de opiniao identitaria atores e performances

1. Episódios

Um homem de mais de cinquenta anos foi acusado de ter agredido a esposa. Sem dinheiro para cobrir os custos de sua defesa, precisou de um defensor público. Na primeira reunião com seu advogado, confessou ter passado dos limites no tom de voz em uma discussão com sua companheira, mas insistiu jamais tê-la agredido fisicamente. A denúncia só foi feita dias depois da suposta agressão. O homem temia muitas coisas, inclusive, que lhe fosse tirado o convívio com seus filhos, coisa que a mulher vociferava desejar. O defensor tomou todas as notas necessárias e intuiu o esquema de sua defesa já ao fim da conversa com o cidadão. Contudo, na primeira audiência com a juíza, e antes mesmo de iniciar a sua fala, escutou da magistrada, que o olhava firme e professoral: “como o senhor sabe, doutor, temos que combater o patriarcado”. Ali, estava claro que os esforços do defensor, por mais articulados e engenhosos que fossem, seriam insuficientes para proteger o acusado de uma condenação. Dito e certo.

Uma professora universitária ministrava aula sobre teóricos da comunicação. Uma jovem mulher trans, debochando da preleção, afirmou que não tinha nada a aprender com os teóricos europeus cis-gênero da bibliografia básica da disciplina. Fez-se um clima de tensão em sala. A professora sentiu-se desrespeitada, e ao tom intimidador da estudante se sentiu amedrontada. Para não perder a autoridade, sustentou sua postura como docente e argumentou em favor da seleção dos materiais usados no curso, demonstrando também erudição acadêmica e compromisso científico. Em certo momento, contudo, cometeu o equívoco de se referir à mulher trans pelo pronome “ele” – equívoco explicável, considerando que a composição física e estética da aluna não permitia a percepção instantânea de uma identidade social alternativa assumida. Ao ser corrigida pela discente, a professora passou a referir-se conforme o solicitado. Mas foi o bastante para que a jovem bradasse, querendo expor um suposto ímpeto preconceituoso enraizado nas intenções da docente e flagrado nos atos-falhos de sua fala. Isso serviria para organizar contra ela um motim. Com o apoio de inúmeros estudantes insuflados pela mesma visão, a jovem exigiu à reitoria da Universidade a exoneração da professora. Apesar de não seguir à frente com o pedido, a reitoria publicou uma nota pusilânime, dando razão àquele empreendimento revanchista e covarde.

Outra professora, também de uma universidade federal, que dedicou anos de sua carreira a disseminar e enriquecer os estudos sobre a temática racial e do feminismo negro, passou por uma das situações mais dolorosas de sua vida, quando, ministrando a disciplina sobre relações raciais, durante o período pandêmico, ouviu de um aluno que ela era uma “branca racista”. A acusação veio após a professora relatar ter sofrido violência racial em uma passagem pela Inglaterra, onde, apesar de branca (para os parâmetros brasileiros), ela, que é judia, era vista como latina. Uma horda de estudantes escondidos nos quadrados indistintos da plataforma virtual passou a menosprezar a formação da docente, e impor a exclusão de materiais listados na bibliografia, não sem reiterar a adjetivação de “branca racista”. O burburinho se espalhou por toda a Universidade derramando sobre alguém cuja trajetória foi o de estudos sobre a negritude a pecha contrária aos seus feitos e esforços. Em reunião com a ouvidoria da instituição, os alunos agressores manifestaram objetivamente o seu clamor: “só queremos um professor negro no lugar dela”.

Um conhecido ator e diretor de uma emissora televisiva de relevo foi acusado de assédio moral e sexual por mulheres com quem trabalhou. A acusação foi feita por meio de revistas e portais de alcance nacional, mas não envolveu a Justiça. A advogada das acusadoras deixou claro desde o início que queria o caso na esfera da opinião pública. Acossado pelas acusações e dilacerado pela repercussão, o ator judicializou o caso, demonstrando, ele próprio, o desejo de esclarecer as situações em que seu nome foi maculado – o que, para a sua profissão, é fatal. Um verdadeiro conluio de servidores do Ministério Público, jornalistas de veículos de largo alcance e artistas foi se sedimentando em favor das acusadoras e contra o acusado, que, não tendo outra alternativa, passou a exibir em um canal do YouTube provas de que cada acusação de que era objeto era falsa. Novamente, a pauta alegadamente feminista contra o patriarcado, na forma de combate ao assédio nas empresas, desencadeou uma lesão acintosa contra o Estado de Direito.

Um humorista branco consagrado nacionalmente por uma série de roteiros e atuações originais, entre os quais aqueles em que ironiza brilhantemente o racismo, e quem nunca incluiu em seus esquemas de apresentações-solo piadas e falas que relativizassem o preconceito ou que o enaltecessem, é convidado a opinar sobre o caso polêmico em que outro humorista, esse envolvido em várias tensões por seu estilo, havia sido o protagonista de uma piada ambígua mas de conotação discriminatória. A opinião é qualquer coisa como: “cabe ao humorista avaliar. Não creio que se deva censurá-lo. Mas eu não faria uma piada assim”. Antes que a opinião pública começasse a digerir esse parecer, alguns monopolizadores do discurso racial no país trataram de insultar o ator e de pedir seu cancelamento público: desvinculação com seus canais, boicote a seus shows e falas e ataques massivos às suas páginas de comentários. Entre eles, uma porta-voz da defesa da negritude, que aborda qualquer assunto sob a clivagem racial, foi categórica em um de seus vídeos dizendo algo como: “isso demonstra que um branco antirracista pode ser muito pior do que um branco racista para a causa antirracista, afinal, branco racista é transparete em suas intenções. O branco antirracista demora um pouco até se revelar tão racista quanto.” O que a cidadã sustenta é que um humorista que se engaja na luta contra o preconceito racial é muito pior do que senhores de escravo e capatazes do século XVIII e XIX que chicoteavam até a falência física os negros acorrentados em praças e vias públicas, considerando que estes são sádicos e assassinos com intenções transparentes desde o início. Alguém que pensa assim tem qualquer intenção de que o racismo deixe de ter lugar em nossa vida social ou vive do espólio contemporâneo da escravidão?

2. Performances

O que todos esses episódios têm em comum, o que os costura, é um vocabulário, o qual, na verdade, é manifestação externa de um imaginário característico de nosso tempo. Seu credo nuclear está em um desenho simplório mas carregado de cores a respeito do mundo social: As sociedades contemporâneas são divididas em identidades coletivas oprimidas por estruturas controladas por indivíduos e grupos opressores; estes gozam com sua posição historicamente privilegiada ao prejuízo das identidades oprimidas.

As identidades são concebidas como distintas, mas a partilhar o mesmo lugar sob a opressão, podendo encontrar circunstâncias de convergência, união e militância. Por vezes, contudo, os oprimidos podem também oprimir: quer performando no conflito como exceções – quando revelam o mesmo ímpeto sádico dos opressores –, quer pela força de sedução da forma de vida opressora – que promete fruição sem ter de enfrentar seus verdadeiros algozes nas estruturas de poder. Ao fazê-lo, esses em dissidência integram o staff dos opressores, porque, supostamente, usufruem dos mesmos benefícios de que gozam eles. Surpreendida com a multiplicação desses casos, as autoproclamadas lideranças dos oprimidos mantêm no vocabulário uma terminologia propícia a nomear e penalizar também seus pares, o que instaura uma sensibilidade de suspicácia no interior do próprio bloco de identidades sem privilégio.

Tudo o que se deve fazer, contra os opressores tradicionais ou contra os opressores convertidos, é identificar as ocorrências da opressão nas relações interpessoais, sociais e institucionais e denunciá-las. O instrumento da denúncia é consagrado como meio de poder. Eis porque a aluna trans se manifestou contra a professora na Reitoria, as atrizes atacaram a reputação do diretor na imprensa nacional, a intelectual foi às redes sociais comentar o caso do comediante branco, onde também os alunos espalharam contra a professora de relações raciais calúnias. A denúncia é estimulada como um recurso para o sonhado empoderamento. E o foro da denúncia, ao menos nestes casos, não é jurídico e formal, mesmo quando lançam mão do apelo à Justiça, mas é a opinião pública semi-informada e passional, de onde espera-se decretar a punição mais severa ao acusado, a da sangria de sua reputação, e alavancar os denunciantes ao clube de prestígio das minorias, a vanguarda dos porta-vozes ativistas.

Aqui estão esboçadas as linhas mestras do modus operandi do identitarismo. É um teatro. A opinião pública é o domínio de julgamento de casos individuais que refletem a herança histórica de opressão a identidades marginalizadas. O julgamento é protagonizado pelos denunciantes, que se querem vítimas diretas dos episódios de opressão, indiretas, como integrantes da mesma identidade ou simpáticas, quando aderem à situação do desafortunado apenas por solidariedade. É o modelo de ação cujo ápice é a performance do cancelamento.

3. Atores

O que é o identitarismo e quem são os identitários? Identitarismo é uma corrente de opinião. Não é um movimento social ou político, uma ideologia, tese ou paradigma de pensamento. Com isso, não quero dizer que não haja teóricos e militantes identitários. Teoria e militância são o próprio espírito da coisa. Mas identitarismo é de fato um feixe de enquadramentos dos fenômenos sociais sob cortes binários com forte tendência à essencialização das figuras sobre as quais seus conceitos se prestam a refletir.

Os identitários são propriamente todos os que reproduzem, por escolha ou vocação, por falta de imaginação ou casuísmo, essa corrente confusa e penetrante. O ponto básico é que, não sendo um movimento, o identitarismo é difuso, sem centro de organização e sem uma intelectualidade orgânica, por assim dizer, engajada na construção de um projeto. É um amontoado de vozes, uma cacofonia de plangores e cóleras.

Esse arcabouço funcional confere ao identitarismo capilaridade. Simples e generoso em suas premissas, dedicado a exaltar as lamentações da vida em sociedade, tanto mais eficazes são sua reprodução e sua disseminação. Qual o indivíduo que não tem interesse em fazer seus sofrimentos ouvidos? Quem não quer condenar os que são os causadores de seu penar? Quem não quer uma revanche contra eles?

São identitários tanto os reprodutores passivos, que apenas assimilam e dão continuidade à mensagem, quanto os ativos, que elaboram o vocabulário básico, os novos léxicos, e que detém os instrumentos ou acesso aos centros de propagação da mensagem identitarizável. Estes constituem uma elite cultural que se conecta e se afina com uma elite do poder e com uma elite financeira, cosmopolita e metropolitana.

Por certo, há identitários nas comarcas e nos fóruns, nas casas legislativas, nas agremiações partidárias, nas universidades, nos centros de pesquisa, como o IBGE, nos bancos do grande oligopólio nacional, como Bradesco, Itaú e Santander, nas grandes emissoras de televisão, como a Rede Globo, em canais do YouTube, nas redações de jornais e revistas, como a Folha de São Paulo, em portais como UOL. E é nesses lugares que eles querem estar. A elite identitária se espalha por toda parte e a impregnação da corrente é tal que a tentação de quase todos os que são perseguidos, agredidos e cancelados pelos identitários é alegar possuir um ativo de aprovação a algum segmento identitário, confirmando e consolidando a vigência da corrente. Quer ver?

Retomemos casos como os já relatados. A professora acusada de transfobia, imensamente fragilizada pela situação a que foi submetida, sentindo-se injustiçada, humilhada e transtornada como nunca, quando teve oportunidade de refletir o caso, declarou: “só fizeram isso comigo porque sou mulher”. Já a docente caluniada como “branca racista”, refletindo sobre o perfil de seus agressores, disse algo como: “são misóginos que só atacam mulheres de esquerda… fossem brancos assediadores de direita, tudo estaria bem.” O ator e diretor acusado, esse sim, de assédio por suas ex-colegas também sacou em sua defesa um trunfo de identidade, ao tornar público o modo como as acusadoras se dirigiam a ele nos bastidores: “negrinho insolente”.

O identitarismo está de tal forma arraigado que não dá sequer para enfrentar o verdadeiro problema por trás das situações descritas e de tantos outros eventos similares que explodem no país. Ao contrário, esses personagens e outros costumam seguir ressoando a corrente identitária com alguns descontos, como se temessem jogar fora o bebê com a água. Vítimas de cancelamentos, calúnias, difamações e ameaças, pronunciam melancolicamente frases como “o problema não são as identidades, mas a essencialização”, quando não o álibi costumeiro: “é preciso separar o método das pautas. As pautas são justas.”

Autoilusão. Não há pautas identitárias. O identitarismo modula a ação, o pensamento e a fala das pessoas e o faz por meio de um expediente muito singular. Não possuindo um corpo coerente de conceitos, nem bandeiras fixas, nem vínculo formal com partidos, nem intelectuais orgânicos ou líderes alavancados pelo reconhecimento popular, ela, influente e difusa, é marcada mais por cacoetes comportamentais do que por teses. O que se consegue, pensando, falando e agindo conforme o identitarismo é espalhar comportamentos desagregadores e conflituosos, como os cancelamentos, ou triunfais, como as performances pedantes e patéticas de lacração em redes sociais.

De novo, não há pauta identitária. Tudo o que há é esse modus operandi que lesa e continuará lesando. Há identitarismo enquanto corrente de opinião e há identitários: os que, querendo ou sem querer, atualizam a corrente reproduzindo seu modus. Mas não relativizemos a culpa por esse quadro. A elite cultural identitária é a principal responsável, porque é a principal beneficiária. Só que ela é uma elite atípica, que costuma proclamar não ser elite e até declarar-se antielitista. Comicamente, lemos a sociedade pelos parágrafos de um pequeno grupo de professores, escritores e profissionais da comunicação (de jornalistas a influencers) que pensam que não são a elite cultural que são. No sentido genuíno da palavra, ela realmente não o é, mas pode ser chamada de elite por exercer a influência cultural hegemônica sobre nossas consciências. Tal influência atravessa as vítimas e os algozes, diabolicamente invertidos nos episódios que relatei.

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