Coringa é um filme necessário para a atualidade

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Contém SPOILER!! Difícil demais falar sobre esse filme. Acho que o que Joaquin Phoenix (no papel de Coringa) e o diretor Todd Phillips fizeram, não tem nome. Quando eu vi a atuação de Heath Ledger em Cavaleiro das Trevas, jurei que jamais alguém poderia supera-lo. E o que Joaquin Phoenix fez não é exatamente isso, porque ele não disputa com nenhum outro coringa da história do cinema, ele simplesmente vai além, muito além de tudo que já foi dito sobre o vilão mais complexo de todos os tempos e também sobre a loucura dentro do cinema.

Sempre tive um fraco por vilões, costumo me ancorar mais nos personagens duvidosos do que nos de certeza heróica. Coringa sempre foi um personagem interessantíssimo e muito político. Mas ainda assim, sempre foi retratado como a personificação da maldade. Ninguém nunca se perguntou, por exemplo, porque os pais do Bruce Wayne eram extremamente poderosos numa cidade onde impera o caos e a desigualdade. Ninguém se pergunta sobre essas coisas até que alguém decida falar sobre elas.

Arthur Fleck é mais um louco marginalizado. Uma peça solta, que não encaixa, não faz laço, não tem lugar na organização social. E encarna isso no corpo, com uma risada inoportuna e incontrolável. A loucura, na sociedade líquida da perfeição, é justamente aquilo que ri enquanto todo mundo chora. É o que incomoda, causa desconforto e não produz sentido, como se fosse uma pontuação fora de sentença.

Quero ressaltar que a crítica artística desse filme tem sido excelente, mas a produção já começa a ser alvo de protestos, pois alguns dizem que é violento demais, forte demais, que faz demagogia à violência e à anarquia. Mas isso é uma bobagem. Se fosse verdade, filmes violentos como, por exemplo, aquele John Wick (que por sinal é ruim demais) seriam boicotados e, ainda assim, ninguém fala deles. O que incomoda no Coringa não é a violência, a anarquia, a crítica política. O que incomoda é a loucura e o quanto estamos próximos dela quando riscamos nossa superfície de normalidade. O que incomoda é pagar pra assistir um filme e acabar mergulhado na angústia sufocante da loucura e dos conflitos de uma doença mental.

Temos ali, como sempre, a relação simbiótica com a mãe e a completa ausência da função paterna; os perigosos segredos de família; o abuso psicológico e a falta de lugar pra alguém que parece desviar do caminho da normalidade. Prato cheio para a psicose. Mas se fosse só isso, eu estaria falando de um filme qualquer e esse não é o caso.

Uma cena, especificamente, me parece mostrar de forma clara a genialidade do diretor. Arthur Fleck – depois de matar a mãe quando descobre que ela mentiu sua vida toda a respeito de sua filiação – recebe a visita de dois colegas de trabalho e mata um deles com uma tesoura, enquanto o outro, que é um anão, assiste desesperado. A cena é fortíssima, parece não acabar nunca. Fechei os olhos nessa hora e vi tudo mesmo assim, pois o horror é imune à negação. Quando ele termina, com a casa ensanguentada pela cabeça desfigurada do homem, o anão tenta sair e não consegue abrir a porta, pois não alcança a tranca. E então, as pessoas dão risada. Acham engraçado, se divertem, debocham. Não é estanho que isso aconteça no meio de uma cena absolutamente violenta e terrível? Essa é a intenção do diretor. No fim das contas, não estamos rindo da desgraça do outro aqui e ali? Esse é o riso fora de hora, sem contexto e sem sentido, que traz à tona uma coisa estranha, bizarra e que não se inscreve no discurso. Esse é o riso da loucura. No personagem do filme, na plateia e na humanidade de cada um de nós. Isso é difícil de ver porque não é hollywoodiano.

Sobre o ator, só posso dizer que ele me comoveu do começo ao fim. Esse tipo de trabalho é uma coisa que me emociona profundamente. Ele não só emagreceu 23 quilos, como deu a cada osso uma vida outra; não há nenhuma parte daquele corpo bizarro em que não se veja a loucura encarnada. É uma coisa impressionante. Os movimentos, os olhares, a risada … isso é levar a arte às últimas consequências. Não foi apenas alguém que se entregou ao personagem, foi alguém atravessado por ele. Ouso dizer que Joaquin Phoenix será sempre um pouco Coringa pro resto da sua vida.

Se é um filme perigoso para os tempos atuais? Eu diria que sim. E, justamente por isso, muito necessário. Mas, sobretudo, é um filme pra ser visto por quem admira um trabalho grandioso, por quem não vai ao cinema de brincadeira, por quem sabe reconhecer uma coisa completamente irretocável. Esse é o motivo pelo qual eu recomendo que vocês assistam esse filme. Pura e simplesmente por amor à arte que é, sem dúvida, a coisa mais incrível da humanidade. E disso os loucos bem sabem.

Por Cauana Mestre