Copom, conto de Fausto Oliveira

Copom conto de Fausto Oliveira
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Em homenagem à quadrilha que mantém os juros no Brasil, vou abrir aqui meu conto COPOM, que está no livro “Estado de mal estar” (Link para o livro aqui).

Desopilem seus fígados comigo!

 

Copom

“Nos siguen pegando abajo”
Charly Garcia

Os nove participantes do Comitê de Política Monetária iniciam o segundo dia de sua reunião periódica. No dia anterior, decidiram mais uma vez subir a taxa de juros da economia nacional. Houve um só voto contrário, do diretor, Horácio Leal, que retornou ao trabalho após se recuperar de um transplante de fígado.

Agora, o Copom deve discutir a ata da reunião. Os que acompanham a política monetária do Brasil sabem que as atas das reuniões do órgão são a comunicação formal com a qual se direcionam as tendências do futuro imediato.

O exercício de redação da ata, no entanto, tem se tornado uma formalidade sem importância. Todos sabem que o Copom continuará subindo os juros para combater a inflação. O que poucos sabem entender é que os sucessivos choques de juros têm efeito nulo sobre o tipo de inflação que sempre ocorre no país.

Economistas honestos e comentaristas menos ignorantes vêm avisando o grande público que a inflação atual é proveniente do lado da oferta. Custos estruturais que poderiam ser bem administrados, como combustíveis e taxa de câmbio, caso o governo — e o Banco Central — não professassem o dogma da não intervenção.

Aumentos de juros só combatem inflações de demanda, que é quando a população tem poder aquisitivo maior do que a capacidade da economia de oferecer coisas.

Os preços então sobem, por lógica. Os juros altos reprimem o poder aquisitivo. Os preços então caem, por lógica. Uma situação que praticamente nunca acontece na economia nacional. O Copom sabe disso muito bem.

Existe um motivo para o atual choque de juros, que economistas honestos e comentaristas menos ignorantes compreendem. Quanto maiores os juros básicos, mais liberdade tem o setor financeiro para cobrar juros altos em seus empréstimos e financiamentos. Sua rentabilidade aumenta exponencialmente, o que leva os lucros financeiros no Brasil a níveis sem paralelo no mundo.

O preço desta apropriação de recursos é pago pelo que se chama, estranhamente, de economia real.A economia real é a economia: fábricas, lojas, transportadoras, trabalhadores, famílias.

O domínio das finanças sobre o restante forçou a adoção do adjetivo real para designar aquilo que é, simplesmente, a economia.

Ao forçar os juros para cima, o Copom reprime a economia real e aumenta a rentabilidade das finanças. Isso significa menos investimento real, menos emprego real, menor salário real, menor poder aquisitivo real. O resultado é o aprofundamento do mal estar social, também porque a inflação de custos estruturais continua intocada.

Nada disso, contudo, fará parte da ata do Copom, que mais uma vez apresentará justificativas técnicas quase ininteligíveis e muitas vezes desconexas.

O novo fígado de Horácio Leal pressente o que virá. Algo lhe faz sentir estranho. Há mais de vinte anos ele participa da definição dos juros no país, e nunca se incomodou com a realidade.

A realidade era para ele aquilo que ainda é para os demais diretores. Um detalhe a mais no modelo teórico: quando a realidade se beneficia do modelo, muito bem; quando não, o modelo prevalece.

O presidente do Banco Central inicia sua fala com elementos gerais para compor mais uma ata. Fala apressado, sem ser contestado, pois todos ali sabem o que estará no documento.

Cenário externo desafiador, desequilíbrio na oferta de bens, expectativas irreais de reativação econômica do país, previsões absurdas sobre mercado de trabalho, ameaças sobre o déficit público, riscos de “desancoragem de expectativas”. E finalmente, a confissão. As pesquisas feitas pelo Banco Central junto a agentes de mercado são o que corrobora toda a análise ora apresentada.

O novo fígado de Horácio Leal lhe avisa o que é óbvio: que justificativas são um produto de prateleira. O Copom não precisa subir os juros, mas quer. E porque quer, usa as justificativas disponíveis.

Um a um, os diretores se sucedem em confirmar a fala do presidente, dando sequência ao uso das melhores práticas da burocracia. O novo fígado de Horácio Leal começa a sentir pontadas. Quando chega sua vez, sorrisos amarelos lhe dão boas-vindas e felicitações pelo transplante bem sucedido.

Leal faz uso da palavra sabendo que nada do que disser constará em ata.
— Obrigado. E desculpem pelo que direi. No mundo, quem define o juro é o Banco Central. No Brasil, é o mercado.

Durante minha convalescência, ouvi constrangido a gravação divulgada pela imprensa. Aquela em que o nosso atual presidente conversa com um conhecido banqueiro. O banqueiro tomou a iniciativa de ligar pessoalmente para o nosso atual presidente e expressou sua insatisfação com o patamar de juros. Um banqueiro telefona para o presidente do Banco Central para pedir juros mais altos. Querem que repita?

A sala do Copom fica silenciosa como uma catacumba. Horácio prossegue.

— Nossas atas fazem parecer que somos muito técnicos, mas sejamos honestos. Das razões elencadas para subir ainda mais os juros, nada se sustenta. O país não cresce adequadamente há décadas, e não vai crescer. O desemprego nunca mais baixou de 10%, ou 11%, e não vai baixar.

Aliás, vai subir. A informalidade laboral se estabeleceu no patamar entre 40% e 45%. Todos aqui sabemos que empregos de alguma qualidade se tornaram um privilégio da classe média alta, e ao resto damos salário baixo e instabilidade radical.

Se esqueceram dos números setoriais? Onde está a retomada do comércio? Como a produção de bens pode aumentar? Aliás, eu hoje me pergunto por que nossas análises não consideram números como a quantidade de fábricas fechadas nos últimos anos.

É um dado que não serve ao propósito do amigo banqueiro que liga diretamente para o nosso presidente. Entendo. Creio que entendemos todos.

O presidente e os diretores têm seus olhos voltados para baixo. Até os objetos sobre a mesa têm dificuldade de encarar Horácio Leal.

— Nós estamos criando esta situação. Fechamos os olhos para fatos autoexplicativos. Passamos a cobrar preços internacionais em insumos essenciais de que somos autossuficientes. Permitimos o agravamento de tarifas de serviços essenciais visando melhorar expectativas de privatização. Que surpresa, colhemos inflação. E então quem deve corrigir o problema que nós causamos é a ralé que já paga mais pelos preços que nós deixamos de controlar? E o modo de pagar é tornar tudo ainda mais difícil para eles?

Senhores, tenho convicção de que nada disto constará em ata. Mas meu novo fígado me dá pontadas desde ontem, quando votei contra este descalabro. Tenho ainda uma coisa a dizer, mas não sei se devo.

É a deixa para os demais diretores, a começar pelo próprio presidente, retomarem a movimentação. O presidente comunica que estenderá a licença de Horácio Leal por motivos de saúde. Os demais colegas sussurram entre si e tentam abordá-lo.

A crítica que acabam de ouvir é algo de que se julgam livres, nos ambientes em que circulam. Um deles se dirige a Horácio, indignado, lembrando-lhe que os caminhos naturais do livre mercado sempre levam ao benefício geral.

Outro, aproveitando-se do argumento do colega, diz a Horácio que o Copom apenas sinaliza um preço que os agentes de mercado marcarão de qualquer maneira. Uma terceira lembra-o da deterioração fiscal incorrigível, dos múltiplos privilégios que enquanto não acabarem continuarão jogando a sociedade na barbárie financeira.

Horário dá um forte golpe de mão fechada sobre a mesa. Todos os pires e xícaras tilintam, e restos de café se derramam.

— Senhores! A cada ponto de juro que subimos em nossas pantomimas periódicas, a dívida do Estado com o mercado aumenta em bilhões. Dezenas de bilhões! Nenhum de nós ignora que isto é um fato!

Nós deterioramos a situação fiscal, e nos arrogamos de corrigi-la passando a conta para o povão. Vou dizer o que não queria dizer, pois seu grau de hipocrisia e cinismo é insuperável. A situação que estamos criando é a semente da revolta.

E são as nossas vidraças onde jogam pedra, quando a revolta acontece.
O fígado novo de Horácio Leal já sabe que depois dessa ganhará uma aposentadoria compulsória. Já faz planos de esconder-se em algum lugar remoto de onde possa assistir a revolta, quando ela acontecer.