Ciro e o esforço pela desalienação política

Eu nunca tinha prestado a devida atenção em Ciro Gomes, até que, coisa de quatro anos, me surpreendi com o que ele vinha dizendo em palestras mundo a fora. Fiquei vivamente impressionado com o fato de ele retomar as questões de fundo, que faziam parte do debate brasileiro desde 1930, interrompido pelo Golpe de 1964.

Durante todo aquele período, o Brasil sempre foi tomado como o principal tema seja na literatura, no cinema, no teatro e no pensamento social que se produzia dentro e fora da academia. Jamais recuperamos um nível tão intenso, generalizado e profundo de debate acerca dos problemas enfrentados por um país na periferia do capitalismo que projetava crescer economicamente e ganhar soberania frente às demais nações e equidade social para o seu povo.

Estou convencido de que só sairemos do buraco em que nos encontramos quando retomarmos de modo igualmente intenso, generalizado e profundo o debate sobre as nossas questões de fundo. Sem que esse debate retorne e sem que o povo abrace um programa mínimo que saia desse debate, nós continuaremos indo ladeira abaixo como estamos. A palavra de ordem “Fora Bolsonaro”, sem qualquer outra consideração, me parece um engodo por, deliberadamente, escamotear a “ladeira abaixo” em que nos encontramos.

Ciro – como negar? – é o único político de ponta que aponta para a necessidade da retomada do debate das questões de fundo, e não é à toa que ele buscou a tradição trabalhista para abrigar esse “esforço de guerra”, porque foi no trabalhismo onde o povo brasileiro mais identificou a luta por sua emancipação.

As insuficiências de Ciro e de seu projeto são muitas, mas, pergunto eu: quem não as tem, sem ter as enormes virtudes de Ciro? O copo está meio cheio e meio vazio ao mesmo tempo. Tendo em vista uma avaliação do passado e do presente, à luz dos nossos interesses nacionais, populares e democráticos, como não colocar em primeiro lugar o “copo meio cheio” do esforço do “coronel que fugiu para Paris” – como insiste chamá-lo o ódio lulista – em tirar o nosso povo da alienação em que vive?

Um povo alienado dos seus reais problemas e das suas reais possibilidades econômicas e políticas é um povo sem capacidade de reagir à altura contra a sanha destruidora dos seus inimigos. O nosso principal inimigo é o neoliberalismo em aliança com o imperialismo; e uma das principais formas da alienação do nosso povo é, precisa ser dito, o lulismo, devido ao seu personalismo e à sua recusa – ora disfarçadamente, ora abertamente, a depender da audiência – em combater a agenda neoliberal.

O lulismo é uma forma de alienação porque Lula e o PT são, faz tempo, forças alienantes. Eles precisam disso porque a sua força depende da continuidade dessa alienação. Sem alienação não há lulismo, e sem lulismo não há Lula e PT. Reside aí uma das razões para o ódio militante que boa parte do lulismo vem devotando a Ciro.

Não tenho dúvida de que o ódio a Ciro – tão persistentemente acalentado – se agencia com os piores interesses antinacionais, antipopulares e antidemocráticos. Estou convencido de que nenhuma boa causa pode estar associada ao ódio a Ciro. Como nenhuma boa causa pode depender da manutenção da alienação. Nenhuma…

Em minha avaliação, tão grave quanto a “continuidade desse governo fascista” é a continuidade da implantação da agenda neoliberal. Deve-se a essa avaliação o fato de eu não dissociar, jamais, a luta contra Bolsonaro da luta contra a agenda neoliberal. Considero ainda que quem faz isso – a dissociação da luta contra o “fascismo” da luta contra o neoliberalismo – colabora para construção de um grande engodo, bem ao gosto da Faria Lima.

O lema “primeiro a gente tira Bolsonaro, depois cuida do resto” – que bem poderia ser a legenda da recente foto de Lula e FHC juntos – torna-se, me parece, uma cortina de fumaça para dar continuidade à alienação na qual se encontra o povo brasileiro como um dos meios para dar continuidade à implantação da agenda neoliberal.

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