Ciências humanas e o utilitarismo

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A ‘mercantilização’ [1] da nossa maneira de pensar e ver o mundo, a influência que as relações de mercado tem sobre os critérios que medeiam as nossas escolhas, todas essas relações cruamente utilitaristas estão nos fazendo paulatinamente menos humanizados.

Estamos nos afastando cada vez mais do humanismo que definia os critérios pelos quais escolhíamos, no passado não muito distante, qual seria a melhor forma de se viver, a melhor escolha a se fazer em relação à comunidade, à sociedade, a melhor forma de nos deleitarmos para gozar do milagre da existência no breve instante de vida que cada ser humano tem ante à grandiosidade e a velhice do bilio(e)nário Universo.

Estamos nos afastando dos critérios humanistas pelos quais celebrávamos as virtudes humanas, a nossa capacidade de criar as mais belas obras de arte, como a Pietà, de Michelangelo; a 9ª Sinfonia, de Beethoven, no mundo da música; o Fausto, de Goethe, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes ou Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, no imenso mundo da literatura.

Estamos nos afastando dos critérios pelos quais investíamos opulentamente nas investigações, nos esquadrinhamentos, nos levantamentos de hipóteses e conjecturas para se explicar as estruturas invisíveis da realidade; estamos nos afastando da Filosofia e das Ciências Sociais: as ferramentas mais sofisticadas que o ser humano desenvolveu para compreender as relações puramente humanas e existenciais, afinal, a Física poderá calcular quantos Ampéres há na sinapse elétrica, a Química poderá nos esclarecer quantos átomos há na massa de um neurônio e a Matemática poderá auxiliar na quantificação de tudo isso, contudo, qual delas nos responderá
o porquê existe consciência, se ela de fato existe, quais as suas implicações, qual sua importância para a existência da linguagem, qual a sua importância nas escolhas que realizamos, por exemplo, quando nos voltamos a nós mesmos e questionamos: quem sou eu e para onde vou?

Antes não se questionava exatamente para que servia tal conhecimento, mas admirava-se a capacidade reflexiva e intelectiva do ser humano; espantávamo-nos com o fôlego de Camões ou com a Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, de Newton; ou com as grandes tragédias de Shakespeare. Entretanto, não podemos ser ingênuos e negar que o conhecimento, fosse qual fosse, não servia para nada precisamente e tampouco se havia consciência disto. Não foi à toa que Galileu negou as suas concepções sobre a Física ou que Giordano Bruno foi queimado vivo. Scientia potentia est, isto é, Conhecimento é poder! Nenhum conhecimento é desinteressado. Tomando consciência vários foram os intelectuais e pensadores que enfrentaram a empreitada de possibilitar o acesso a esse poder àqueles a quem interessava, afinal, o que foi o Iluminismo?

Entretanto, mesmo nessa concepção, o conhecimento, ou melhor, a Filosofia, a Literatura, as Artes, as Ciências Sociais não eram renegadas, mas exploradas até os seus limites. Era por meio desses conhecimentos que se buscava justificar e explicar coisas injustificáveis, pois se sabia do poder delas. Era sabida a potencialidade de influência desses campos de conhecimento sobre as comunidades, sobre as sociedades, afinal, o que foi o mal do século no período oitocentista? Ou as revoluções do século XX influenciadas pelo marxismo? Ou desenvolvimento material do mundo capitalista?

Essa é a razão do porquê não ser interessante que comunguemos de valores humanistas, mas utilitaristas oriundos da lógica de mercado. Afinal, para tudo o que se consome há uma pergunta: para que serve isso mesmo? E não basta que se responda que é para aliviar as dores da existência, e não serve se responder que serve simplesmente para se espantar, para se admirar o alcance do intelecto humano. Há uma necessidade imperiosa de se responder: serve para conversar, para sentar, para dormir, para se locomover. Não bastando uma resposta humanista, perde-se o valor. Não é “útil”. Contudo, ninguém se pergunta: “para que serve a utilidade?” Por conseguinte, a humanidade se embriaga com o consumo de “coisas úteis” e se aliena com o sentimento inebriante da utilidade de tudo que há no mundo. Bauman nos alertaria que até nossos próprios companheiros e companheiras seriam descartáveis, escolhidos pelo critério da utilidade: “o namoro ou casamento não serve mais? Portanto, que cada qual vá atrás de outrem que seja mais útil”.

Não obstante, é diante desse império da utilidade e do afastamento dos valores humanos que nos desinteressamos pela Filosofia e pelas Ciências Sociais, que ignoramos o real valor desses conhecimentos. Afinal, o critério de utilidade deriva das Ciências Naturais e Exatas: a Matemática auxilia o engenheiro a erguer o prédio; a Química auxilia ao farmacêutico na elaboração de novos fármacos; a Física dá o suporte para que chegue energia a todas as casas e a Biologia permite uma engenharia genética que poderá nos levar a superar inúmeros problemas biológicos. Contudo, e as Ciências Humanas? Nessa perspectiva, de fato, não haveria uma finalidade prática para elas a não ser o fato de que permitem a cada ser humano desenvolver a sua criticidade, ver o mundo além de suas aparências, além dos dados sensíveis e enganosos, e auxiliar a cada indivíduo a perceber quando se está sendo manipulado por aquele que possui o poder e afirma que as Ciências Humanas não têm utilidade.

Lembro-me bem de haver lido em Kant na resposta ao “O que é esclarecimento?” que cada indivíduo era responsável por abandonar a minoridade (estado de ignorância e susceptibilidade à manipulação de outrem) para alcançar a maioridade; para não se depender, por exemplo, do conhecimento do clero, daqueles que detinham o poder. É certo que, quando não se tem o conhecimento o seu único acesso se dá por meio do detentor do poder, tornamo-nos dependentes desse poderoso. Por outro lado, quando se atinge a maioridade e esse poderoso passa a ser questionado, a História nos revela o que ocorre. Afinal, o que seriam das Revoluções Burguesas sem o auxílio imprescindível do movimento Iluminista?

Parece-me, portanto, que temos um novo clero na história: um clero que se chama capitalismo e que tem os seus representantes muito bem definidos. Assim como o clero do século XVII desejava manter o poder eliminando toda a possibilidade de crítica a ele, hoje temos Jair Bolsonaro e seus representantes aqui no Brasil lutando para manter o poder por meio da eliminação das Ciências Humanas, além da promoção de seu revisionismo histórico. Contudo, nós conhecemos a História, nós conhecemos as raízes do nosso presente, nós sabemos o valor da existência do pensamento crítico, da problematização, sobretudo, entre os mais pobres relegados à miséria. É por esse motivo que as Ciências Humanas não hão de acabar, mas hão de humanizar novamente cada indivíduo, para que se deleite e se critique com as obras de arte e com a literatura; para que se questione todos os poderes e ações ilegítimos por meio da Filosofia; para que se compreenda o mundo à nossa volta e a razão de ser tal como se é, conforme nos possibilitam as Ciências Sociais; por fim, para que se renegue definitivamente esse anti-humanismo que representa a figura do nosso Governo Federal. Essa é a finalidade das Ciências Humanas, esse é o seu desígnio: humanizar.

Por Igor Wefer

Referências

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1 Aqui se utiliza desse conceito enquanto uma configuração dos critérios de escolha do indivíduo definidos pela influência inexorável do mercado e suas relações comerciais.