Cabral na solitária: não há tempo para moralizar o debate sobre a execução penal

Sérgio Cabral na solitária
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Cabral na solitária

Sérgio Cabral (MDB-RJ) que, assim como os demais presos processados pelo ramo fluminense da Lava Jato, está cumprindo pena em Bangu 8 (no Complexo Penitenciário de Gericinó, zona oeste do Rio de Janeiro) foi mandado para a “solitária” na última terça-feira, 24 de julho. A “medida disciplinar” foi determinada após um procedimento de rotina realizada pelo promotor da fiscalização penitenciária em que, segundo a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap), o ex-governador do Rio de Janeiro “demorou a sair da cela e não se colocou em posição de respeito”. Mais especificamente, Cabral teria contestado a necessidade de abaixar a cabeça e ficar virado para a parede enquanto ocorria a vistoria do Ministério Público.

O Juiz da Vara de Execuções Penais entendeu que a medida foi abusiva e ilegal e, no mesmo dia, determinou que o emedebista voltasse para sua cela, o que já aconteceu. Além disso, o magistrado declarou nulo o procedimento disciplinar que foi instaurado em relação à conduta de Cabral.

Importante salientar que o evento dessa semana não foi o primeiro enfrentado por Sérgio Cabral em seu cumprimento de pena: em janeiro, quando teve a transferência para Curitiba ordenada por Moro, foi transportado com pés e mãos algemados.

Abuso de autoridade e violação de direitos é modo de funcionamento da execução penal no Brasil

O fato de Sérgio Cabral ter sido mandado para a solitária porque se recusou a cumprir uma ordem descabida de abaixar a cabeça fez com que parte da imprensa se mobilizasse para contar, com certo espanto, a “novidade” do abuso de autoridade na execução penal. É claro que apresentar isso como algo extraordinário é ultrajante para quem conhece minimamente a realidade das Unidades Prisionais brasileiras, onde reinam a arbitrariedade, o uso excessivo da força e o desrespeito aos direitos e garantias mais elementares dos apenados.

O modo de funcionamento da execução penal no Brasil se afasta muito do que é previsto pela LEP (lei 7210/84). Além dos casos já conhecidos e emblemáticos de superlotação e torturas, são constantes e generalizados os problemas que, como o que aconteceu com o ex-governador do Rio, fazem parte do cotidiano daqueles que cumprem suas penas e mesmo dos que aguardam presos seus julgamentos. A má qualidade da alimentação (muitas vezes fornecida por empresas terceirizadas que descumprem seus contratos); a precária, quando existente, assistência à saúde, que frequentemente abandona à morte quem dela necessita, e a constante limitação ao direito de visitação pelas familiares de presos, da qual a revista vexatória é o exemplo paradigmático, são apenas alguns aspectos capazes de ilustrar a realidade de quem está preso em nosso país. Destacadamente, o uso desproporcional ou mesmo indevido de “medidas disciplinares” faz parte do dia-a-dia de quem respira os ares das prisões de norte a sul do Brasil e certamente não foi Cabral quem as descobriu.

Não há tempo para moralizar o debate

Por outro lado, é importante que não moralizemos a situação e que não incorramos no discurso que se limita à queixa de que ninguém se importa com o fato de a massa da população carcerária (pobre e quase sempre preta) sofrer cotidianamente represálias muito piores do que aquelas sofridas pelo acusado da Lava Jato. É necessária que haja indignação e se amplie a atenção  fundamentalmente daqueles que se propõem a denunciar as ilegalidades da execução penal contra os “presos comuns”.

Quando até mesmo um político importante e com grande visibilidade na mídia é alvo de uma medida disciplinar abusiva pelo simples motivo de ter questionado a necessidade de um procedimento duvidoso, fica evidente que os parâmetros de barbárie no sistema prisional brasileiro estão operando de forma ainda mais escrachada do que era sabido. Trata-se de um fator grave e alarmante para todos, não só para os advogados do ex-governador ou para seus aliados.

Traço, inclusive, e ressalvadas as peculiaridades de cada caso, um paralelo com a prisão de Lula. O ex-presidente certamente não foi o primeiro a ser encarcerado sem sentença penal condenatória transitada em julgado, mas sua prisão é, além de absolutamente sintomática do modo de funcionamento do tacanho judiciário brasileiro, uma autorização pra que seja feito muito pior com a população em geral. Da mesma forma, é preciso entender que a revolta em relação à medida ordenada por um membro do Ministério Público contra Sérgio Cabral não necessariamente significa mera apropriação oportunista e seletiva da denúncia dos problemas da execução penal. É fundamental reconhecer que a breve, porém notável, passagem do ex-governador pela solitária é elemento importante para a compreensão do estado de coisas nas unidades de cumprimento de pena no Brasil.

Faço questão de repetir: não há tempo ou espaço para moralizar o debate e esbravejar contra a comoção seletiva pelo fato de o emedebista ter ido para o isolamento sem motivos razoáveis. O grito das prisões é urgente e a realidade com a qual estamos ou deveríamos estar comprometidos não permite que sejamos levianos na análise, na crítica e na ação.