A arte do cinema. Guerra e morte. As tartarugas podem voar

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“Il est de la règle de vouloir la mort de l’exception. Il sera donc de la règle de l’Europe de l aculture d’organiser la mort de l’art de vivre qui fleurit encore à nos pieds”. (GODARD, Jean-Luc. Je vous Salue Saravejo, 1993)[1].

arte do cinema. Guerra e morte. As tartarugas podem voar.

“As tartarugas podem voar” é o título de um filme do diretor iraniano Bahman Ghobadi. Este filme retrata a vida de crianças em um acampamento de refugiados. Estamos prestes a vivenciar a invasão americana em território iraquiano e a queda de Saddam Hussein.

A relação deste filme com a epígrafe do texto em vista dos acontecimentos é fascinante. Possibilita afirmar, assim como Eric Hobsbawn que “o mundo como um todo não teve paz desde 1914 e não está em paz agora”[2]. A ‘cultura’, os povos civilizados, ou de modo mais evidente, as superpotências mundiais devido aos seus interesses sempre praticaram a destruição da “arte de viver”.

Os interesses econômicos nesta sociabilidade sempre foram sobrepostos à arte de viver, ainda mais quando se tratavam de “populações inferiores” para o mundo ocidental. A criação de inimigos-monstros justifica toda barbárie perpetrada contra estes. Isso é possível extrair dos registros do que ocorreu no Iraque e próximo a fronteira deste com o Irã (onde nossos protagonistas se localizam) e também no comentário de alguns colunistas norte-americanos atualmente quando tecem palavras sobre o OrienteMédio, no caso, especificadamente o Irã: (…) eles são (o Irã) a nação mais genocida da terra, eles exportam violência e terror ao mundo inteiro. Trump, por conseguinte, tem fundamento em resistir a eles”[3]. E como percebem Serge Halimi e Pierre Rimbert se trata da gestação de uma guerra, de formar o imaginário social para o combate.

Inclusive, não se trata de uma nova estratégia, mas sim de uma velha e conhecida estratégia. A doutrina Bush consagrou após os atentados de 11 de setembro de 2001 o “eixo do mal”, os inimigos da nação estadunidense. E nisso, reformulou sua estratégia de guerra. Nas palavras do Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld (31/01/2002):

A defesa dos EUA requer prevenção, autodefesa e às vezes a ação antecipada. Defender-se contra o terrorismo e outras ameaças emergentes do século XXI pode muito bem exigir que a guerra seja levada ao inimigo. Em certos casos, a única defesa é uma boa ofensiva[4].

A guerra preventiva tornou-se paradigma, sintoma paranoide da civilização que incansavelmente, como na indústria cinematográfica, cria vilões para justificar suas ações ofensivas. A luta dos heróis da civilização necessita de inimigos, e os próprios heróis impacientes na ausência de um Coringa buscaram incansavelmente supérfluos,árabes, negros e comunistas como possíveis demônios prestes a atacar.

Todavia, do outro lado, o que se encontravam eram crianças sem pais, homens e mulheres desesperados, com medo, desafiando a lógica que lhe imputavam a morte constantemente. Percebeu-se que atrás do lema de Democracia e Liberdade, a engrenagem era de terror e dominação.

No filme, quanto mais se aproxima da invasão norte-americana, mais o protagonista que é um exíguo conhecedor da língua inglesa e da cultura norte-americana começa a perceber essas contradições. Ainda que a ideologia fosse despejada dos céus por helicópteros que lançavam mensagens como: “É o fim da injustiça, do infortúnio e sofrimento”; “somos seus melhores amigos e irmãos”; “nós faremos deste país um paraíso”. “Satélite”, ao decorrer do filme, demonstra-se desencantado com tais possibilidades, talvez infelizmente tarde demais, percebeu que o que os soldados americanos deixavam e traziam consigo não era muito bom.

A beleza do filme é aquilo que Godard nomeou como exceção, a arte de viver. Em meio ao conflito crianças órfãs, adultos amedrontados, fazem resistência a viver. A bicicleta, o cuidado, o amor, a amizade aparecem como maneira de sobrevivência ao horror.

Ainda com o cineasta francês, este diz que a exceção se manifesta tanto pelo viver como de modo escrito, assim, neste texto, aparece um poeta itabirano que diz: É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio[5].

Tartarugas podem voar é o sublime do cinema, onde a guerra é alcançada em outra perspectiva. A perspectiva daqueles que sofrem e ainda assim, mesmo que visivelmente supérfluos para as potências do mundo, contrariam sua lógica e, como a flor que fura o asfalto, vivem.

Referências

Referências
1 Curta-metragem produzido por Jean-Luc Godard em 1993, “Seja bem-vindo a Saravejo”, onde o trecho retirado como epígrafe expressa: “A regra quer a morte da exceção. Portanto, a regra da Europa Cultural é organizar a morte da arte de viver que floresce ainda em nossos pés”.
2 HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução José Viegas. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 22.
3 “(…)Ils sont [l’Iran] la nation la plus génocidaire de la Terre, ils exportent violence et terreur dans le monde entier. Trump est donc fondé à leur résister. Peut-être comprend-il mieux les gens de cette espèce que des personnes au brillant parcours scolaire”.(BROOKS, David. Mai. 11, 2018) Extraído do texto : Si tu veux  la guerre, prépare la guerre, de Serge Halimi & Pierre Rimbert. Link : https://www.monde-diplomatique.fr/2019/08/HALIMI/60159
4 Le Monde Diplomatique: Guerra preventiva, um conceito perigoso. Dossiê 9. Link: https://diplomatique.org.br/guerra-preventiva-um-conceito-perigoso/
5 Poema de Carlos Drummond de Andrade “A flor e a Náusea” encontrado no livro “A Rosa do Povo”