Depois da “ajuda humanitária” – América do Sul na encruzilhada

O Brasil cedo ou tarde deverá assumir o princípio de que a América do Sul é para os sul-americanos, ou estaremos todos condenados à vassalagem. 
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Passado o teatro da “ajuda humanitária” para a Venezuela, o que temos?

  • Iván Duque, presidente da Colômbia, sofreu a grande derrota continental: latiu alto, com os EUA prontos para soltar a coleira, mas foi obrigado a recuar com o rabo entre as patas assim que escutou Maduro rosnar do outro lado;
  • Jair Bolsonaro foi poupado de uma derrota semelhante. Os militares brasileiros conseguiram conter a sanha americanista que tomou conta do Itamaraty  e evitar que o Brasil fosse humilhado na mesma medida. Isso ficou claro com o discurso de Maduro em Caracas, no último sábado, quando o presidente venezuelano condenou a Colômbia e poupou o Brasil, sinalizando que compraria os alimentos e remédios que o Brasil desejasse vender;
  • Ontem, o presidente Bolsonaro declarou que aceitaria conversar com Nicolás Maduro caso este se comprometesse com um processo de redemocratização no país vizinho. Se o gesto foi sério, não se sabe, assim como seria duvidoso Maduro aceitar. O fato é que esse encontro seria um recuo para ambos, e portanto esse fato deve permanecer no plano discursivo;
  • Tal situação não difere tanto da diplomacia verbal de Trump e Kim. Ainda que a questão tenha avançado o bastante para que os dois líderes se encontrassem duas vezes (uma ontem, em Hanói), a essência é a mesma: ameaças crescentes, vulgares, e escalada de tensão no início, seguido de apertos de mão, sorrisos, e reconhecimento mútuo da grandiosidade da liderança de cada um. Por trás disso tudo, a Coréia do Norte não dá um passo em direção à desnuclearização, enquanto os EUA não cedem um milímetro na questão do isolamento econômico imposto ao país asiático. O equilíbrio se mantém e a guerra fica para depois;
  • A declaração de Bolsonaro cumpre sua função de apaziguar os ânimos, ainda que não haja a intenção de um encontro de fato entre o presidente do Brasil e o presidente da Venezuela. Resume também a vitória do núcleo militar de Mourão, Heleno e Santos Cruz sobre o núcleo “olavista” de Ernesto Araújo, Damares e Vélez Rodríguez;
  • Ernesto Araújo deveria ser demitido. A forma como tentou conduzir a crise refletiu a maior submissão de um chanceler brasileiro aos interesses de Washington desde a independência do Brasil. Não fossem os militares do governo e o Brasil poderia agora estar instalando uma base militar dos Estados Unidos na Amazônia sem qualquer ameaça externa à nossa soberania.

Apaziguadas as tensões (não eliminadas), é útil refletir sobre o que passou e o que virá.

A crise certamente não existiria se o Brasil não houvesse perdido o protagonismo regional das últimas décadas. Claro que o modus operandi imperial dos Estados Unidos – mas também de todas as grandes potências – é um elemento que precisa constar na equação sob prejuízo de não identificarmos os verdadeiros vetores de todo o processo. No entanto, não existe vácuo de poder: foi a ausência de uma articulação regional, liderada naturalmente pelo Brasil, que abriu espaço para que EUA, Rússia e China passassem a disputar o destino da Venezuela, país com as maiores reservas de petróleo conhecidas do planeta.

Portanto, não há boa solução para a crise que não passe pelo retorno do Brasil ao tabuleiro geopolítico regional de forma autônoma, distanciando-se da política externa ideológica-submissa de Ernesto Araújo e retornado à tradição da política externa independente de Afonso Arinos de Melo Franco e San Tiago Dantas e do pragmatismo de Azeredo da Silveira.

Tampouco se pode ignorar a experiência positiva da política externa ativa e altiva de Celso Amorim no governo Itamar Franco e nos anos Lula. Porém, é preciso ir além.

O mais importante, agora, e também possível, é firmar posição em torno da soberania inviolável da Venezuela e da não intervenção. Trata-se de diretriz para o curto prazo, e os militares do governo já se ocuparam disso.

No médio e longo prazos, importará redesenhar a visão de política externa do país e o papel do Brasil no continente diante da sociedade:

  • A América do Sul deve ser vista como questão de profundo interesse nacional. Manter relações comerciais, cooperação regional, políticas econômicas em comum e articulação defensiva com todos os nossos vizinhos, independentemente de regime político democrático ou autoritário, é premissa para qualquer política;
  • Da mesma forma que por interesse nacional os EUA mantém laços firmes com a ditadura da Arábia Saudita, que participa ativamente do suprimento de petróleo dos norte-americanos, o Brasil não pode abrir mão do mercado consumidor de 30 milhões de venezuelanos, que faz fronteira com o nosso país e pode ser indispensável para a economia da região Norte. Como indicam dados do Ministério da Economia, as exportações brasileiras para a Venezuela regrediram a ponto de significar uma queda de quae 90%, tudo em troca de uma hostilidade ideológica sem sentido;

  • Construir uma visão não ideológica e fundamentada no interesse nacional acerca das relações exteriores com a América do Sul é essencial. Para isso, é inadiável recusar a dicotomia democracia-ditadura nas relações internacionais. A América do Sul compõe o entorno do nosso país, o que importa culturalmente, defensivamente e comercialmente. A chave interpretativa e prática que implica limitar o engajamento do Brasil apenas a parcerias com democracias faz da nossa mobilidade externa uma constante vítima da posição discursiva dos EUA (nunca a posição prática);
  • O comportamento externo do Estado brasileiro tem que ser pragmático, para que nossos interesses e os interesses comuns do continente sejam sempre prioridade.

Como bem disse o peruano Victor Raúl Haya de la Torre, os continentes sem capacidade de governo e de defesa próprias estão condenados à vassalagem, a serem colônias dos mais distintos imperialismos. O caso mais notório é a África.

O Brasil, cedo ou tarde, terá que assumir o princípio de que a América do Sul é para os sul-americanos, e deverá sempre ter em mente que a distância entre o destino e o anti-destino de uma nação, de um povo ou de um continente é mais larga que a fronteira entre dois países.