Carta aberta pela renúncia do presidente da ANPOF

Carta aberta pela renuncia do presidente da ANPOF
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Quando Luther King declamou o “I Have a Dream”, ouvimos um dos discursos mais cheios de valor da história registrada do mundo. Ali ele descreveu o sonho de que suas filhas “crescessem num país onde fossem julgadas não por sua cor de pele, mas por seu caráter”. Para ele, assim como para a maioria das pessoas que acredita estar lutando contra os preconceitos e exclusões em nossa sociedade, lutar contra a exclusão de grupos é lutar para que as pessoas que fazem parte deles sejam julgadas por seu valor e capacidade intrínsecos, e não pelo estereótipo que possa se ter daquele grupo.

Mas, principalmente a partir dos anos 90, com a difusão do anti-humanismo, relativismo epistêmico e niilismo moral nas produções teóricas voltadas para movimentos de minorias, vimos a mudança de foco político progressivo destes da luta contra o preconceito para a luta contra os próprios conceitos e valores que julgavam diminuí-los com sua mera existência. Passaram a atacar os próprios valores que, na visão deles, causavam a exclusão de grupos marginalizados.

Um exemplo típico é o valor da “capacidade”. O conceito de “capacitismo” é um dos maiores absurdos que já vimos surgir do relativismo ocidental.

A luta contra o preconceito dirigido a pessoas com deficiência consiste em mostrar que APESAR DA DEFICIÊNCIA, que existe, elas podem ser tão eficientes, ou ainda até mais eficientes, em vários aspectos, que qualquer um. Para isso, devem ser preparadas e receberem assistência especial para desenvolver suas CAPACIDADES e se tornarem membros produtivos e construtivos da sociedade.

Como pai de uma criança com dislexia, eu não quero para ela a destruição do valor da leitura para que ela se sinta incluída, mas sim a disponibilização de treinamento e recursos que a ajudem a desenvolver essa habilidade ao máximo e superar as limitações que persistam com outras compensações de forma a atingir, ela própria, a excelência intelectual e profissional. Não quero destruir o conceito de excelência para que ela se sinta menos oprimida vivendo num mundo de mediocridade e fantasia.

A escola e a universidade públicas, portanto, devem estar preparadas para oferecer condições especiais para que essas pessoas, QUANDO POSSÍVEL, atinjam a excelência acadêmica como todas as outras, e essa é a forma mais completa de inclusão social que podem oferecer a elas. Mas para quem defende que escolher ou classificar pelo mérito ou buscar desenvolver capacidades é “capacitismo”, o que importa é atacar o próprio valor de “capacidade”, e defender que ser cego, ou surdo, ou ainda mesmo ter paralisia cerebral, não é um déficit ou uma coisa negativa, mas uma mera “diferença”.

O que alguns não percebem nessa posição é que defender isso é o mesmo que defender que enxergar, ouvir, ou ser inteligente, não são qualidades, virtudes ou mesmo coisas positivas, mas meras “diferenças”.

No entanto, estou certo que nem o pior dos psicopatas quer que seu filho nasça cego, ou surdo, ou paralisado.

Por muitos anos, escolhemos como acadêmicos ou cidadãos fechar os olhos para esse discurso organizado dentro da Universidade como se estivéssemos lidando com um fenômeno localizado de radicais sem importância. Mas anteontem, recebi em choque um artigo publicado na Folha de São Paulo pelo presidente da Associação Nacional de Pós Graduação em Filosofia, a ANPOF, defendendo que a distribuição de verbas estatais pelos cursos e pós graduações brasileiras, baseada no critério de promoção da excelência acadêmica, seria uma forma sofisticada de promoção da exclusão social e eugenia.

Repito, promover a excelência acadêmica seria uma forma de promover a exclusão social e a eugenia. Pelo menos para mim, pessoalmente, a leitura de tal barbarismo civilizatório vindo de um cidadão que no momento preside uma entidade de minha classe, marcou o rompimento de uma fronteira inaceitável.

O conteúdo deste artigo foi tão bárbaro, que recebeu a resposta indignada de um artigo coletivo de oito ex-presidentes da ANPOF. Mas isso não é o suficiente. O processo de transformação da pós-graduação de humanas brasileira numa ação entre militantes para produção de textos irrelevantes para sociedade e distribuição de títulos acadêmicos cada vez mais desmoralizados, chegou num ponto crítico.

Não acreditem que nosso povo assistirá passivo por muito mais tempo tamanho bacanal de empregos e bolsas com remunerações muito acima de seus sonhos e possiblidades, bancado por seu dinheiro para produzir discurso sem valor científico contra tudo o que acreditam. Vemos claramente agora que isso já está muito longe de ser um problema de aparelhos isolados, “radicais” ou grupos fanatizados. O relativismo e niilismo finalmente estão começando a controlar todos os extratos dirigentes daquilo que um dia, foi a “academia” brasileira.

Aquilo inventado há 2500 anos por Platão para desenvolver a capacidade dos indivíduos e o conhecimento da humanidade, está sendo instrumentalizado contra os próprios valores de ‘capacidade’, ‘mérito’ e ‘conhecimento’ que nasceu para promover.

Chegamos ao ponto máximo até aqui de destruição do papel da Universidade na nossa sociedade. De lugar de produção de conhecimento e aumento das forças e capacidades produtivas da nação, de lugar de verdadeira inclusão social pela força do mérito e do esforço aberto a todas as classes sociais brasileiras, esses militantes anti-valor estão a transformando num aparelho de militância política e espaço de sustento de indivíduos que nada tem a oferecer para o conhecimento ou mesmo a sociedade, um clube de psicoterapia e distribuição de títulos com cada vez menos prestígio social e que só servem para pessoas se sentirem incluídas num mundo mórbido de fantasia niilista.

Não sei se temos como reverter a destruição que nossa sociedade contaminada pelo relativismo e niilismo mais grotesco atingiu, mas o que acredito é que todos os professores que não querem perder sua dignidade deveriam se levantar finalmente contra esse processo.

Vamos tentar salvar a Universidade como espaço de desenvolvimento e aperfeiçoamento humanos, de produção de conhecimento e tecnologia, de formação profissional para atividades necessárias para o bem estar social.

Essa carta não é uma articulação de reação política, mas uma chamada individual a cada consciência individual de meus colegas de profissão. Esqueçam suas conveniências políticas e pessoais e ergam suas vozes contra essas barbaridades que há muito já perderam completamente qualquer limite moral.

Quanto ao Senhor Érico Andrade Marques de Oliveira, atual presidente da ANPOF que defendeu tamanha indignidade na Folha de São Paulo, só posso pedir que renuncie a seu cargo para não desmoralizar ainda mais a Filosofia e a Universidade Pública no país.

Gustavo Arja Castañon

Professor de Filosofia e cidadão brasileiro.