O dogmatismo do livre mercado, a pandemia e Direito

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Com a edição da Lei 13874/19, a Lei da Liberdade Econômica, um tema infelizmente foi pouco debatido entre acadêmicos, jornalistas e profissionais do Direito: a revogação da Lei Delegada 4/62.

Há vários debates sobre a (in)constitucionalidade da Lei da Liberdade Econômica. Existe uma ADI ajuizada pelo PDT contra vários dispositivos da Lei. De fato, a Lei busca reverter a lógica da Ordem Econômica Constitucional (art. 170 e seguintes).

Mas a inconstitucionalidade é um outro tema. Aqui gostaria apenas de chamar a atenção para um dos últimos dispositivos da Lei, o artigo 19 que revogou expressamente a Lei Delegada 4/62. E do que trata essa antiga Lei?

A Lei Delegada, assinada pelo João Goulart, disciplinava a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo. São instrumentos jurídicos que legitimam políticas de intervenção do Estado no processo econômico.

Por exemplo: a Lei dispõe que fica autorizado o Estado a intervir no processo econômico para assegurar a livre distribuição de mercadorias e serviços essenciais ao consumo e uso do povo. A intervenção pode ocorrer na COMPRA (insuficiente produção nacional) ou VENDA (escassez).

São vários os produtos que entram nessa lista: gêneros e produtos alimentícios; aves e pescado próprios para alimentação, tecidos e calçados de uso popular, equipamentos de uso individual, máquinas, produtos e materiais indispensáveis à produção de bens de consumo popular etc.

Sobre o abastecimento, a Lei disciplinava ainda sobre a possibilidade de: regular e disciplinar a produção, distribuição e consumo das matérias-primas, tabelar os preços máximos, condições de venda visando impedir lucros excessivos.

A lei estabelecia ainda um conjunto de sanções administrativas para as atividades econômicas em caso de descumprimento: sonegar gêneros ou mercadorias, recusar vendê-los ou os retiver para fins de especulação, fraudar as regras concernentes ao controle oficial de preços etc.

Perceba que a Lei Delegada 4/62 era um verdadeiro Código contra Crises. Uma Lei que regulava instrumentos jurídicos essenciais que o Estado tinha a sua disposição em caso de crises na produção, comercialização e consumo de bens essenciais.

O mais interessante é que, após a Constituição de 88, nenhum governo pensou em alterar a Lei Delegada. Até governos de ideologias liberais, como Collor e FHC, perceberam que a lei, apesar de antiga, era um instrumento essencial de legitimação de atuação do Estado.

A Lei de Liberdade Econômica editada pelo Presidente Jair Bolsonaro simplesmente revogou esse arsenal jurídico em razão do simples dogmatismo do livre mercado. Trata-se de uma revogação que não encontra qualquer tipo de fundamentação plausível.

Agora estamos aqui: com uma enorme crise e sem instrumentos jurídicos para promover o processo de intervenção em caso de necessidade pública. Evidentemente, o Executivo poderá editar MPs em caso de desespero e retornar com alguns instrumentos da falecida Lei Delegada 4/62.

Mas o ponto é exatamente esse: a negação de complementariedade entre Estado e Mercado impõe uma cegueira irracional, ao ponto do próprio Executivo abrir mão de suas armas em meio de uma guerra.

Por Leonardo Correa

Professor de Direito Econômico da Universidade Federal de Juiz de Fora e membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico

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