O subdesenvolvimento brasileiro está em fase de atualização

Vista do Morro do Papagaio em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil (Thinkstock/Thinkstock)
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Dado o esforço do governo para tudo privatizar, resta a pergunta: com o Estado cada vez mais desprovido de instrumentos para dinamizar autonomamente a economia brasileira e superar o subdesenvolvimento, quem ou que setor assumirá essa tarefa?

Essa é uma pergunta que deveria assombrar nossas autoridades da área econômica, caso realmente se preocupassem com o futuro.

Como sabemos, no entanto, predomina o horizonte de curto prazo com a intenção de atingir os tão desejados superávits primários em prol de credores improdutivos que sugam os recursos do país.

Para isso, a solução está posta. Basta liquidar a nação.

Que sejam mesmo vendidas todas as empresas estatais e o capital estrangeiro se apodere das empresas privadas nacionais que restam. Mas os investidores são exigentes. Preferem contas no azul do que balanços negativos.

O governo, então, “racionaliza” os custos empresariais (demitindo trabalhadores, cortando investimentos planejados, devolvendo dinheiro do BNDES ao Tesouro) para, só depois, os investidores se sentirem confiantes para abocanhar os lucros.

O Modelo Brasileiro

Para responder àquela pergunta (quem assumirá a tarefa de dinamizar a economia brasileira?), vale viajar um pouco no tempo.

No início da década de 1970, já no exílio, Celso Furtado lançou um pequeno livro chamado Análise do ‘modelo’ brasileiro.

Fazer um paralelo exato deste livro com a economia brasileira atual não seria recomendado. Na década de 70 caminhávamos para o auge da industrialização nacional iniciada na década de 1930 com Getúlio Vargas, tornada irreversível na década de 1950 com Juscelino Kubitschek, e prestes a alcançar a maturidade com o II PND de Geisel.

Hoje acontece o oposto: desindustrialização prematura causada por três décadas seguidas de abertura de setores da economia a produtos estrangeiros sem qualquer critério, câmbio valorizado, juros altos e metas de inflação predominando sobre qualquer meta de geração de emprego e crescimento econômico.

De qualquer forma, Celso Furtado pode jogar alguma luz sobre os nebulosos tempos à nossa frente. Ocorre o seguinte.

O que chamamos de revolução industrial representa um profundo aumento de produtividade decorrente do progresso tecnológico, da divisão do trabalho e de um redimensionamento dos mercados.

Adam Smith já havia entendido que a divisão social do trabalho, que aumenta a produtividade, podia ser limitada pelo tamanho do mercado. Quanto mais extenso um mercado, maiores as possibilidades de intensificar a divisão do trabalho, atingindo níveis de produtividade cada vez maiores a custos decrescentes.

Introduzir, em determinada economia, um fluxo de produtos em permanente diversificação exige um nível de capitalização maior do que o necessário para difundir esses novos produtos. Leia-se: os investimentos devem ser maiores na etapa de introdução de inovações do que na etapa de difusão das mesmas.

Por consequência, se o nível de introdução de inovações é maior que o nível de difusão, percebe-se um movimento de concentração de renda. Se os produtos, as inovações introduzidas, se difundem rapidamente para o conjunto da economia, percebe-se uma tendência à desconcentração de renda.

Não assistimos a um boom consumista no governo Lula? Com camadas da população menos aparelhadas financeiramente consumindo televisões, celulares, computadores, carros mais modernos? Sabemos hoje que a redistribuição de renda não foi tão intensa quanto a propaganda, mas de fato ocorreu.

Mas retornemos ao livro de Furtado. O nosso autor contextualiza historicamente a industrialização brasileira como um processo atrasado em relação aos países desenvolvidos, que se industrializaram majoritariamente no século XIX.

Desde o início daquele século a economia brasileira estava integrada no circuito internacional de troca de mercadorias. O padrão de consumo surgido com a industrialização europeia havia chegado aqui antes da indústria e as elites locais já consumiam como europeus.

Na sociedade escravocrata do Brasil do século XIX, onde a renda era altamente concentrada por motivos óbvios (metade da população não recebia qualquer renda), a difusão do progresso tecnológico era incomparavelmente menor do que a sua introdução.

O que havia de mais sofisticado no moderno universo de consumo francês, inglês ou estadunidense chegava às elites brasileiras enquanto o bestializado povo brasileiro sequer sentia o cheiro. O único aumento de produtividade em solo pátrio se dava pelo uso mais intensivo dos recursos naturais e de investimentos estrangeiros em infraestrutura de transporte, tudo voltado a aumentar as exportações que pagariam o consumo da alta classe.

Quando em 1929 entra em queda livre o valor das exportações, em função da quebra da Bolsa de Nova Iorque e a quase fatal crise do capitalismo do século XX, o país perde a sua capacidade de importar. A única alternativa é produzir internamente o bens antes comprados lá fora: começa a famosa industrialização por substituição de importações.

Jamais, porém, as elites renunciariam ao seu elevado padrão de consumo. Para atender a esse consumo pré-existente, a industrialização brasileira exigiu níveis de capitalização significativos, demandando uma disponibilidade de capital inexistente no país.

Aí a principal diferença entre a industrialização europeia e a brasileira. Enquanto lá se formou antes a disponibilidade de capital, seguida de indisponibilidade de mão-de-obra (pois a população logo foi absorvida pelos empregos industriais), no Brasil havia insuficiência de capital e abundância de mão-de-obra.

Em função da indisponibilidade de mão-de-obra, a tecnologia europeia evoluiu no sentido de poupar trabalho. É com essa tecnologia importada que o Brasil erguerá seu parque industrial no século XX, mas num contexto de desemprego estrutural afetando multidões.

Para ser capaz de poupar trabalho, essas tecnologias eram intensivas em capital. Assim, quanto mais avançava a industrialização no Brasil, maiores os aportes financeiros necessários ou a conveniência de recorrer ao capital estrangeiro, cujos investimentos nessas tecnologias já se encontravam amortizados.

Vejamos de outra forma: para introduzir através da indústria as inovações que as camadas mais altas da população antes recebiam através do comércio, foi preciso não apenas manter a estrutura concentrada da renda como aperfeiçoá-la.

Quando essa estrutura foi ameaçada pelas Reformas de Base de João Goulart, sobreveio o golpe militar de 1964. No atual estado do Rio de Janeiro (então Estado da Guanabara), onde Jango proferiu seu famoso discurso sobre as reformas, o salário mínimo real declinou 4% ao ano entre 1964 e 1970.

Naturalmente, o processo de introdução de inovações durante a ditadura militar, apoiado em empresas multinacionais portadoras do domínio tecnológico, superou em larga escala a difusão do mesmo progresso tecnológico ao conjunto da população.

O povo brasileiro se viu excluído dos benefícios materiais do desenvolvimento econômico.

Por outro lado, como os investimentos e o consumo de tais bens industriais impuseram um maior nível de concentração de renda, o tamanho do mercado, no longo prazo, encontrou limitações. Adam Smith estava certo: a extensão do mercado brasileiro afetou a produtividade nacional.

O Modelo Brasileiro em 2019

O governo atual opera como um balcão de negócios. Depois de enxugar o que for preciso, liquidará o patrimônio que restar.

As rendas obtidas serão dirigidas aos cofres dos credores financeiros do país, que nada produzem.

Desmoronada a estrutura de intervenção do Estado nacional na economia, caberá às multinacionais, cada vez mais presentes no nosso território, comandar a dinâmica econômica.

A tecnologia trazida por elas corresponderá à mesma lógica: intensiva em capital, poupadora de trabalho. Além disso, a penetração de multinacionais não implica em reversão da desindustrialização. Coexistem sem grandes problemas.

Munidas de redes de fornecimento próprias e inseridas em cadeias internacionais de produção, a mera entrada de empresas estrangeiras dotadas de tecnologia intensiva não é bastante para estimular o encadeamento produtivo nacional, mesmo que certo efeito multiplicador aconteça naturalmente.

Ainda assim, é evidente que essas empresas estão prontas para funcionar conforme a estrutura social existente, implicando em maior restrição do mercado, aumentando o fluxo de inovações amparadas em altos investimentos e consumo de alta renda.

Não se poderia confundir tal sentido da industrialização, contudo, com a industrialização em abstrato.

Uma indústria planejada pelo Estado nacional, amparada em empresas públicas, no controle de recursos estratégicos que não devem flutuar ao sabor do mercado, numa ampla colaboração com o setor privado, principalmente o capital privado nacional (alavancado através de subsídios e monitorado por metas), mas também com o capital estrangeiro, operaria de forma radicalmente oposta e mais eficiente.

Entre os principais fatores de produção no Brasil, há ampla disponibilidade de mão-de-obra e de terra, e muito menor disponibilidade de capital. O livre-mercado comandado pelo capital estrangeiro não consegue utilizá-los de maneira que seja eficiente para nós.

Para absorver a população, o crescimento do emprego industrial teria que superar o aumento populacional em tal ordem que as tecnologias poupadoras de mão-de-obra não se tornassem um problema intransponível.

Isso é trabalho para um Estado forte:

Investimento público; uma política agressiva e indiscriminada de comércio exterior; capacitação técnica e educação voltada para pesquisa e registro de patentes; proteção da indústria nacional contra competidores externos, ao mesmo tempo em que se amplia o mercado suficientemente para que o capital externo encontre aqui fontes de lucro que justifiquem sua colaboração com o nosso projeto de desenvolvimento; reforma agrária; planejamento urbano que recupere a construção civil etc.

O Brasil precisa se capacitar não apenas para difundir as inovações em escala ampliada, beneficiando o conjunto da população, mas também para lançar no mercado um fluxo crescente de inovações nacionais, simultaneamente inundando o mundo com o progresso tecnológico brasileiro.

Muito se fala em aumentar a produtividade do trabalho no Brasil. Isso não se fará com reforma trabalhista, reforma da previdência e privatização de empresas estatais. Aumento de produtividade é fruto de inovação tecnológica, organização da produção, acumulação de capital, e ampliação do mercado.

Infelizmente, o “modelo brasileiro” de 2019 contempla apenas o desmonte do Estado e do capital produtivo nacional. Trata-se de uma atualização do subdesenvolvimento.