Pelo fim do patriarcado na previdência

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A cultura patriarcal se faz presente na abordagem de gênero da previdência social brasileira desde a criação dos primeiros institutos de aposentadorias e pensões nos anos 30, quando as mulheres que trabalhavam eram exceções e consideradas o sexo frágil que deveria ser protegido e aposentado mais cedo.

Hoje o cenário social e previdenciário mudou radicalmente. Cerca de quatro em cada sete aposentados [1] e 86,5% dos pensionistas por morte [2] são mulheres.

PORQUE AS MULHERES SÃO AS GRANDES BENEFICIÁRIAS DA PREVIDÊNCIA?

Esse cenário tem como causa dois fatos insofismáveis. O primeiro é que mulheres em média vivem mais do que os homens. Segundo o IBGE [3], em 2017 os homens tinham como expectativa de vida no Brasil 72 anos e 5 meses, enquanto as mulheres viviam em média 79 anos e 6 meses. Uma diferença de mais de sete anos de vida.

Apesar dessa grande diferença no Brasil ser devida ao extermínio da juventude negra masculina nas periferias, mesmo quando consideramos a expectativa de sobrevida de quem atingiu quarenta anos, as mulheres ainda têm quatro anos de vantagem. A tendência biológica natural de menor longevidade do macho e o exercício dos trabalhos mais desgastantes e perigosos da sociedade são partes da explicação deste fenômeno.

O segundo fato é que as mulheres no Brasil se casam em média com homens cerca de 4,2 anos mais velhos [4], o que, de novo, não tem base somente cultural, mas predominantemente biológica: o homem tem uma vida reprodutiva muito mais longa do que a da mulher.

A “DUPLA JORNADA” FEMININA

A aposentadoria não foi criada pelas sociedades modernas como prêmio final de uma vida de trabalho, mas como um seguro social que protegeria as pessoas no momento em que elas deixassem de ser capazes de se sustentar.

Assim, ela deveria ser concedida para proteger as pessoas nos últimos anos de suas vidas. Porque então no Brasil aquelas pessoas que estão, em média, mais longe da morte e melhor fisicamente se aposentam cinco anos mais cedo do que as que estão piores fisicamente e mais perto da morte?

A resposta principal costuma a ser a de que mulheres na verdade trabalham mais ao longo da vida do que homens, cumprem dupla jornada no cuidado do lar e, portanto, devem ser compensadas com uma aposentadoria precoce.

O problema é que a dupla jornada feminina não é a regra, mas a exceção.

Mulheres no Brasil, em 2017, trabalharam praticamente tanto quanto homens, mas em condições muito mais leves. E quem diz isso não sou eu, é a PNAD [5], a mesma “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios” que é usada por grupos de pressão femininos para defender o modelo atual.

Segundo a PNAD, entre trabalhos domésticos e cuidados com terceiros as mulheres que trabalham fora gastaram em média no ano de 2017 18,1 horas semanais, enquanto os homens gastaram 10,3 horas.

Essa é a parte da pesquisa que você geralmente lê nos jornais para justificar a existência da chamada “dupla jornada” feminina. O que você geralmente não lê é o que lerá a seguir.

As mesmas mulheres que trabalham 7,8 horas a mais em casa trabalham 4,8 horas a menos fora. Homens que fazem tarefas domésticas trabalham em média 39,9 horas semanais fora, e as mulheres, 35,1 horas.

Não é só isso. Essa pesquisa não considera o tempo de deslocamento médio do trabalhador brasileiro para o trabalho, mas os indicadores de mobilidade da PNAD de 2012 [6] tem esses dados: uma hora no transporte por dia. Grosseiramente poderíamos estimar 5 horas semanais perdidas em média de comutação (casa-trabalho-casa). Só que homens trabalham fora em média praticamente um turno a mais que as mulheres. Distribuídas de forma equivalente à quantidade de tempo que trabalham fora de casa, temos uma média de 5,4 horas de comutação para os homens contra 4,6 horas para as mulheres.

E ainda não acabou. A PNAD 2017 [7] revela que cerca de 7,9% dos homens e 6,9% das mulheres trabalha em casa para consumo próprio (criação de animais, construção, lenha). Essa proporção acrescenta às horas de trabalho globais dos homens uma hora, e às mulheres, 0,6 horas por semana.

A quantidade média de horas trabalhadas por homens e mulheres ocupados no Brasil em 2017 pode ser estimada aproximadamente pela seguinte tabela:

Ocupação Doméstico Transporte Próprio Total
MULHERES 35,1 18,1 4,6 0,6 58,4
HOMENS 39,9 10,3 5,4 1,0 56,6

Ou seja, as mulheres trabalham em média no Brasil, segundo o IBGE, 1,8 horas (3%) a mais por semana que os homens, diferença que nem de longe poderia justificar que elas se aposentassem com 12% a menos de tempo de trabalho. Essa diferença de carga horária não é nada que tenha, nem de longe, semelhança com uma dupla jornada. A dupla jornada exclusivamente feminina no Brasil é um mito.

QUAL É A QUALIDADE DO TRABALHO FEMININO E MASCULINO?

A base do desequilíbrio da relação trabalho feminino/masculino são as horas trabalhadas a mais no cuidado de terceiros e domésticos (8 horas a mais mulheres) contra as horas trabalhadas fora (5 horas a mais homens).

A pergunta então se impõe: há comparação qualitativa entre uma coisa e outra? O trabalho doméstico é, em média, muito menos estafante que a média do trabalho físico de homens e mulheres fora de casa. A mesma PNAD [8] indica que dois dos tipos de cuidados domésticos de terceiros a que mais pessoas se dedicam são os de brincar (75,7%), e fazer companhia (89,8%), ou seja, simplesmente se contabiliza como trabalho doméstico o tempo sozinho com filhos e idosos no mesmo ambiente.

No subitem de tarefas do lar não parece razoável que jogar o lixo fora ou lavar louça sejam consideradas atividades tão desgastantes quanto recolher lixo nas ruas de madrugada, controlar trânsito no sol, fazer batidas policiais, cortar cana, erguer prédios e carregar sacas de víveres, todas tarefas esmagadoramente desempenhadas por homens. E mesmo em tarefas fisicamente não desgastantes, quem não trocaria cinco horas de seu trabalho na rua por oito horas lavando louça e brincando com seus filhos? Eu trocaria por dezoito.

Da mesma forma, no item de trabalho para consumo próprio, o tipo de atividade predominante de homens é a construção enquanto a das mulheres é o reparo de roupas e sapatos [9].

Em suma, homens fazem trabalhos em média mais perigosos, desgastantes e estafantes que mulheres, e mesmo que assim não fosse, parece indisputável que não há comparação entre o desgaste de cinco horas de trabalho fora com o de oito de trabalho doméstico.

HÁ ALGUM OUTRO MOTIVO PARA MULHERES CONTINUAREM A SE APOSENTAR ANTES?

Quem se depara com esses fatos pouco conhecidos geralmente parte para outros caminhos de justificação da aposentadoria precoce feminina. O primeiro é a dívida histórica. Mas isso não justifica que as mulheres que hoje estão no meio e início de sua vida produtiva sejam privilegiadas pelo sofrimento presumido de outras. A aplicação de uma regra de transição que protegesse aquelas que estão próximas da aposentadoria hoje já seria o suficiente para essa compensação do passado. Lembrando que esses números têm mudado ano após ano e só no ano passado o número de homens dedicados a trabalhos domésticos aumentou em 4,5% contra um aumento de 1,9% das mulheres. [10]

Segundo, é comum se alegar que as mulheres ganham menos que os homens fora e, portanto, deveriam ser compensadas na aposentadoria. Isso é uma meia verdade. Pesquisa do IBGE [11] em 2018 repetiu os dados de 2017 e mostrou que mulheres ganham cerca de 20,5% menos que homens em parte porque trabalham cerca de 13,2% menos horas semanais (cinco). Além disso, aos homens cabem os trabalhos mais perigosos e desgastantes da sociedade, que pagam, por isso, um pouco mais.

Não é verdade que essas horas trabalhadas a mais pelas mulheres em casa são apropriadas pelos homens para trabalhar mais fora. A PNAD [12] mostrou que homens que vivem sozinhos ou desempregados trabalham em casa praticamente o mesmo tempo que os homens que vivem conjugalmente. Ou seja, o homem gasta menos tempo com as tarefas que ele considera essenciais para manter a vida mesmo em comparação com as mulheres que vivem só.

Por fim, temos um fato insofismável em favor das mulheres. Elas engravidam e dão a luz, e isso de fato prejudica muito suas vidas profissionais. É difícil para uma mãe manter sua vida profissional diante da maternidade, que dirá evitar os prejuízos dela. Isso deve ser compensado em minha opinião pelo sistema previdenciário, a questão, é como.

Julgo que o adequado é compensar a mulher diferentemente na medida de sua dificuldade específica, que é a descontinuidade profissional causada pela maternidade. Assim, o adequado seria um tempo de contribuição menor para a mulher, não idade. Mas que esse tempo de contribuição menor só seja facultado a aquelas, e somente aquelas, que são mães, na medida do número de filhos e condição de sua criação (mães solteiras ou não).

PELO FIM DO PATRIARCADO

Feministas tem como hábito só lembrar das desvantagens culturais que o patriarcado trouxe à história das mulheres. Mas os homens também pagam seu preço pelos resquícios desse sistema de várias formas.

A aposentadoria mais cedo de mulheres no Brasil é um deles, um resquício do paternalismo patriarcal com o qual elas eram tratadas no passado, a crença de que elas são frágeis demais para trabalhar por tanto tempo. A manutenção desse privilégio feminino, hoje incontestável, só serve para que a cultura de imputar às mulheres o papel do trabalho doméstico sobreviva por mais tempo, afinal de contas, elas já são regiamente remuneradas pela sociedade por ele com cinco anos a menos de trabalho.

É por isso que quase todo mundo desenvolvido já superou essa discriminação contra os homens. Dos 35 países da OCDE [13] apenas quatro possuem a mesma diferença de cinco anos para a aposentadoria das mulheres: Chile, Polônia, Israel e Áustria. Outros países têm intervalos menores: Reino Unido (2,5 anos), Hungria (2), Turquia (2), República Tcheca (1,33), Estônia (1), Suíça (1), Itália (0,5) e Eslovênia (0,4). Segundo o mesmo levantamento, entretanto, futuramente a diferença de idade será extinta em nove desses países, devido a reformas já aprovadas e em fase de implementação, restando distinção por gênero apenas em Israel (3 anos), Chile (5) e Suíça (1).

Em resumo, no Brasil homens vivem 7 anos a menos, trabalham 5 anos a mais, em trabalhos mais pesados e arriscados, para que com a nova reforma da previdência, que elevará a idade mínima de aposentadoria para 65 anos, praticamente morram trabalhando, para financiar com o suor de seu rosto a aposentadoria a ser usufruída por uma média de dezoito anos pelas mulheres, e a pensão por sua morte por cerca de 11 anos em média.

Se isso não é uma irracionalidade econômica é o que? Uma aberração moral?

[1] http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-04/mulheres-representam-56-dos-beneficiarios-do-inss
[2] https://mps.jusbrasil.com.br/noticias/932438/mulher-1-previdencia-e-majoritariamente-feminina
[3] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23200-em-2017-expectativa-de-vida-era-de-76-anos
[4] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/13445-asi-crescem-unioes-entre-mulheres-mais-velhas-com-homens-mais-jovens
[5] PNAD 2017: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101560_informativo.pdf
[6] http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=20329
[7] PNAD 2017
[8] PNAD 2017
[9] PNAD 2017
[10] PNAD 2017
[11] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/23924-diferenca-cai-em-sete-anos-mas-mulheres-ainda-ganham-20-5-menos-que-homens
[12] PNAD 2017
[13] https://www.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/pensions-at-a-glance-2015_pension_glance-2015-en

Por Ricardo Franco, economista.

  1. Achei interessante a proposta de que um cálculo para basear a previdência das mulheres se dê levando em conta o binômio “tempo de contribuição-filhos”. Isso parece de fato importante. Realmente o uso do tempo de uma mulher com alguém para cuidar (um filho, dois, três filhos) é diferente. Seu tempo disponível para trabalhar profissionalmente é diferente de uma pessoa do mesmo sexo/gênero sem filho, ou seja, fazer o fator idade suplantar aquilo de fato altera o uso do tempo de uma pessoa (nada mais concreto para alterar isso do que um filho, por exemplo) de fato não é tão bom para esse cálculo.
    Entendo que o autor do texto tenha dito que os fatores “tempo gasto em ocupação profissional” e “tempo gasto em trabalho doméstico” sejam insuficientes para calcular o uso do tempo entre homens e mulheres na nossa sociedade e tenha recorrido, então, a outros fatores para mostrar como essa diferença de uso total do tempo geral para trabalho não é tão diferente assim entre homens e mulheres.
    Mas acho que não é razoável simplesmente somar todos os fatores para analisar o tempo total gasto com o trabalho, pois são atividades de natureza bem diferente, não são variáveis de mesmo peso (no funcionamento real e moral da nossa sociedade). O tempo gasto com trabalho doméstico (cerca de 8 horas maior para as mulheres, segundo a tabela) é fundamentalmente um tempo revertido ao coletivo, não apenas a quem desempenha essa ação. Isso é um tempo que uma pessoa gasta com ela e os outros, isso é servir ao funcionamento doméstico ou familiar. Ou seja, outras pessoas (talvez nossas crianças, talvez os idosos de quem cuidamos, talvez o par do casal, talvez um homem) podem se beneficiar desse tempo e reverter o tempo equivalente para outras coisas.
    Já o tempo gasto com transporte (maior para os homens) não é algo dessa natureza.
    Talvez no cálculo geral do uso do tempo, o peso dessa variável “tempo gasto em trabalho doméstico” não possa ser o mesmo peso do tempo gasto em transporte e consigo próprio, por exemplo.
    Também pelo levantamento mostrado no texto, os indicadores fazem pensar que as mulheres são mais suscetíveis (não por serem santas, talvez pela falta de oportunidades de viver o contrário) a trocar tempo de trabalho profissional (algo que traz desgaste físico, sim, mas também status social e patrimonial a elas) pelo tempo doméstico, ou seja, mais suscetíveis a trocar o uso do tempo no mundo profissional-social pelo uso do tempo cuja natureza é revertida ao coletivo (preparar a refeição de todos, limpar os espaços domésticos usados pelo seu núcleo familiar, limpar e organizar roupas, utensílios do seu núcleo).
    Essa parece ser uma diferença crucial que ocorre entre os papéis de sexo/gênero hoje em dia e o uso do tempo para o trabalho geral. É razoável igualar, enquanto variável, ao tempo no transporte ou ao tempo de trabalho próprio? É razoável desprezar do cálculo para um seguro social da idade não produtiva a natureza do trabalho doméstico e essa geração de mulheres jovens que ainda cresceram mais atreladas a ele?
    O texto também parece errado ao associar a menor longevidade dos homens ao desgaste vindo do trabalho profissional. Um relatório recente da OMS mostra que a diferença de longevidade está associado à diferença no acesso à saúde. Nos lugares em que homens homens e mulheres têm as mesmas doenças, os homens frequentam menos os atendimentos hospitalares, fazem menos exames, apresentam taxas muito mais altas de suicídio. Claro, as relações desiguais que vivemos afetam sua saúde física e mental, mas não é o mundo do trabalho que afeta diretamente sua longevidade.
    Não acho que o maior tempo do trabalho doméstico das mulheres seja fator nem para justificar a diferença da idade mínima das mulheres na previdência atualmente, nem para simplesmente acabar com essa diferença e igualar as idades.
    Mas, sim, acho que o cálculo para a previdência, quanto mais fica baseado nos papéis de gênero da sociedade, mais tem chance de ser injusto – pois esses papéis não são homogêneos e são fluidos. Já a menção a um cálculo que levasse em conta a presença dos filhos – e de algum desconto no tempo de contribuição para aquele entre o casal mais impactado profissionalmente com seu cuidado (a mulher é impactada e atrelada até no nível corporal e biológico, não só no gênero, mas entre os casais homoafetivos poderia haver alguma decisão disso) – me pareceu justa.
    Ou seja, acho que seu modo do autor do texto de defender a ideia está criando mais problemas e ajudando pouco. Porque o que ele acha criticável os movimentos feministas podem demonstrar que não é. E o que ele acha que causará raiva aos movimentos feministas (acabar com o fator “idade” para diferenciar homens e mulheres na previdência) pode mais facilmente ser visto como algo sensível e inclusive interseccional (porque daria oportunidade para diferenciar os papéis de gênero das mulheres com ou sem filhos e entre os casais homoafetivos de homens com filhos, por exemplo).
    Por favor, autor do texto, não jogue lenha na fogueira da briga entre machismo e feminismo quando seu objetivo também for ver o mundo melhor.

  2. Quero apenas agradecer à Beatriz, que fez o comentário dela em maio de 2019. Colocou os pontos de forma clara e criticou o texto no que ele é criticável, pelo ponto de vista de uma pessoa realmente preocupada com um mundo mais justo e não em atacar um gênero.

    Admiro esse nível de lucidez, didatismo e paciência. Parabéns.

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