21 de abril decalcado

21 de abril une coisas diferentes. Dois dias para trás, nos idos de 1882, nasce Getúlio Vargas, o político brasileiro; dois para frente, mas quinze anos depois, Pixinguinha, o inconteste brasileiro.

Em 1792, Tiradentes foi enforcado publicamente, esquartejado e enterrado como indigente. Verdadeiro precursor da República, o alferes Joaquim José da Silva Xavier tornou-se um mártir da independência do Brasil. Adeus, monarquia.

168 anos depois, em 1960, Brasília surge do meio do cerrado, como um ato deliberado de posse. Disse seu construtor aos desconfiados: “no dia 21 de abril colocarei minha bagagem num automóvel e quem quiser que me acompanhe”. Claro, todos acompanharam JK. Esplêndida, construída em chocantes 3 anos e 6 meses. Foi a nossa marcha para o oeste.

Os detratores udenistas de ontem e os reacionários de hoje a chamam de “extravagância”, “loucura” ou “elefante branco”. Esquecem-se, coitados, de que Brasília significou antes de tudo um projeto de integração nacional para que os brasileiros enfim se apossassem de seu próprio território. Com ela, o Brasil foi rasgado de cima abaixo por rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, hidrelétricas. Prova maior da nossa capacidade, a Capital da Esperança tornou-se patrimônio cultural da humanidade em 1987. Adeus, complexo de inferioridade.

JK assim se referia ao dia de inauguração da capital: “De fato, sentia-me tenso desde que chegara ao Planalto. Tudo me comovia: a cidade; a recordação das lutas travadas; a vibração do povo; enfim, a contemplação da obra, que ali estava, em todo o esplendor de sua beleza plástica. Vivendo aquele tumulto de emoções, não conseguia desfazer um aperto que sentia na garganta, e que se refletia até na entonação da minha voz. Quando os ponteiros marcaram 20 minutos do dia 21 de abril, e vi o espetáculo de som e cores que armara no céu e, olhando em torno, vi a multidão contrita e com lágrimas nos olhos, não consegui me conter. Cobri o rosto com as mãos, e, quando dei fé de mim, as lágrimas corriam dos meus olhos”.

 

Dois anos depois, a 21 de abril de 1962, inaugura-se o campus da UnB, a primeira universidade brasileira criada especificamente para pensar o Brasil como tema e problema. Filha de Darcy Ribeiro na pele de político e educador, a missão da UnB foi por ele assim definida: “O Brasil não pode passar sem uma universidade que tenha o inteiro domínio do saber humano e que o cultive não como um ato de fruição erudita ou de vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar o Brasil como problema. Esta é tarefa da Universidade de Brasília. Para isso ela foi concebida e criada. Este é o desafio que hoje, agora e sempre ela enfrentará”. Adeus, educação paulista.

Dez anos antes, em 21 de abril de 1952, o mesmo Darcy Ribeiro, dessa vez vestido de etnólogo, “vivendo meses no meio de bugres”, comenta em carta com um amigo de infância sobre o papel dos índios na cultura brasileira: “Primeiro lhe digo que os índios são gente que nem nós; segundo, que me ensinam mais sobre nós próprios que sobre si mesmos. Terceiro, o quê? Bem, as experiências humanas que vivo: imagine, um peixe fora d’água, seu espanto ao descobrir que há atmosfera. Esse o meu caso, depois de meses entre índios, como quando começava a encontrar, a sentir a força espantosa disso que chamam cultura”. Adeus, intelectuais descompromissados.

Darcy, sobre os índios Bororos: “Com os Bororo, um povo solar, aprendi a ver outra forma de espiritualidade, completamente diferente da dos Guarani. No seu caso, trata-se da religiosidade intentíssima de uma comunidade liderada por sacerdotes, a cujos olhos os vivos e os mortos estão todos presentes. Os mortos formando uma espiral, que da casa central da aldeia se abre pelo céu acima, com a multidão de todos os Bororo que viveram, indo e vindo, para dar e pedir notícias.
Para eles, o que os vivos vêm como caça ou pesca é aquilo que, para os mortos, é planta ou matéria inerte. A morte não tem, nessas circunstâncias, nenhuma importância. Quando uma pessoa sofre, sobretudo se é um homem ou mulher madura, eles simplesmente a ajudam a morrer, dizendo: ‘Você já dançou muitas vezes. Você já cantou muito. Vá agora, vá. Passe para o outro lado’”.

 

21 de abril também marca a morte de Nina Simone, em 2003. Ao lado de Malcolm X, Martin Luther King Jr. e tantos outros, instrumentalizava a arte para fazer política. Suas canções não funcionavam como “música de fundo” de um movimento político; ao contrário, Mississippi Goddamn, Young Gifted and Black, e I Wish I Knew How It Would Feel to Be Free (mas também My Baby Just Cares for Me e I Put a Spell on You) determinavam sentidos, constituíam significados profundos, enfim, organizavam a ação. “Como ser um artista e não refletir sobre os tempos? Essa, para mim, é a definição de um artista”. Adeus, reacionários e isentões.

 

Há dois anos saía um artigo de Conti sobre a turnê “Caravanas”, de Chico. De lá pra cá, a “gente ordeira e virtuosa”, que “bate” e “mata” os “estranhos suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho”, ganhou um novo aliado: a flexibilização do distanciamento social para enfrentar o coronavírus será mais eficaz para a matança do que o apelo “pra polícia despachar de volta o populacho pra favela ou pra Benguela, ou pra Guiné”. Nada de novo. Desde a fundação, o país vem gastando gente aos milhões.

Não à toa, Paratodos fecha o show. Aquela em que o poeta ostenta, orgulhoso, o inconteste Pixinguinha, o maestro soberano Tom Jobim, João Gilberto e, após louvar todos os outros grandes nomes da nossa música, arremata: “Vou na estrada há muitos anos, sou um artista brasileiro”. Adeus, mediocridade.

 

21 de abril de 2020. O que esse devaneio meio cabalístico meio histórico de personagens tem a oferecer? Evidentemente nada… ou originalmente tudo: estamos na estrada há muitos anos – e, como diz Maiakovski, o mar da história é agitado. Tosco e hiperreacionário, o atual governo nada tem a oferecer ao país. Adeus, Bolsonaro.

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