Atenção, Brasil: a Petrobras já foi privatizada

Atenção, Brasil: a Petrobras já foi privatizada

AFP PHOTO / VANDERLEI ALMEIDA

No dia 25 de outubro, a Petrobras anunciou novos aumentos de 9% para o diesel e 7% para a gasolina – o décimo primeiro reajuste do ano. No dia seguinte, jornais de grande circulação anunciaram que, em 2021, a elevação do preço médio da gasolina no Brasil já somava 76%, valor semelhante aos do diesel e do gás de cozinha (aquele mesmo que o “superministro” da Economia Paulo Guedes prometeu reduzir pela metade). No dia 28, a Petrobras anunciou lucro líquido de 31,1 bilhões de reais apenas no terceiro trimestre e 75,1 bilhões no acumulado anual, anunciando também a decisão de dobrar a distribuição de dividendos para os seus acionistas para mais de 63 bilhões – ou seja, bem mais da metade dos seus lucros.

Em seguida, sob uma chuva de críticas, Bolsonaro e Guedes se lançaram numa campanha de ataques contra a Petrobras. No dia 30, em rápida conversa com o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, Bolsonaro referiu-se à Petrobras como uma “dor de cabeça”. Dois dias depois, antecipou que a empresa realizaria novo aumento até o fim de novembro e que “isso não pode acontecer”. No dia 10 de novembro, foi além, afirmando:

“Não é fácil vencer essa batalha, não tenho ingerência sobre a Petrobras, tanto é que espero privatizar parte dela, né? E não é fácil privatizar parte dela. Já entrei em contato com a equipe econômica, porque a Petrobras é um monstrengo, uma coisa, uma estatal que tem monopólio e vive praticamente em função dela.”

Afinal, se a Petrobrás é reconhecida como uma empresa estatal, como pode o presidente da República reivindicar não ter “ingerência” sobre ela?

Publicado há poucos meses pela editora Contracorrente, “Nacionalização: necessidade e possibilidades”, de autoria dos juristas da USP Gilberto Bercovici e José Augusto Fontoura Costa, é um pequeno livro que, com clareza e objetividade, instiga grandes reflexões a esse respeito.

No seu primeiro capítulo, afirmam os autores (p. 22) que a redação original da Constituição Federal de 1988 foi clara, no Artigo 177, em estabelecer o monopólio da União sobre a pesquisa e a lavra de petróleo e gás natural; o refino do petróleo “nacional ou estrangeiro”; a importação e exportação dos produtos e seus derivados; e o seu transporte marítimo e terrestre, embora prevendo a possibilidade, em casos específicos, de cessão ou concessão à participação de outros agentes nessas atividades. Apesar disso, nos anos 1990, com a implementação do chamado “Consenso de Washington” no Brasil, teve início a “aplicação das teses neoliberais” e uma onda de privatizações de empresas estatais. Para os autores (p. 29),

“[…] a privatização ocorre quando a gestão de atividades de titularidade ou de propriedade pública foi transferida para entes privados, geralmente por meio de concessão, delegação ou autorização. Além dessa forma, a privatização se manifesta na abertura ao setor privado, parcial ou total, do capital social de empresas cuja titularidade pertence ao Poder Público. Nesse último caso, o Estado pode continuar a deter a maioria do capital social ou pode se tornar minoritário ou até mesmo sair da composição acionária. Em geral, essa última modalidade, a que transfere a titularidade dos meios de produção do setor público para o setor privado, não apenas a sua gestão, é entendida como a privatização propriamente dita”.

Com efeito, segundo os autores, a privatização “stricto sensu” é compreendida como aquela na qual a posse da empresa antes estatal é transferida integralmente para um ou mais entes privados. Todavia, a privatização em sentido amplo não requer esse passo. Ao contrário, ela contempla a possibilidade de que o Estado preserve a maior parte do capital social da empresa, desde que haja transferência da “gestão de atividades de titularidade ou de propriedade pública […] para entes privados” e/ou “abertura ao setor privado, parcial ou total” daquele capital.

Adiante, os autores mapearam os casos da Vale do Rio Doce e da Petrobrás. No último caso, em 1995, Fernando Henrique Cardoso propôs a “flexibilização” do monopólio da União sobre o petróleo. Então,
“A Emenda Constitucional n. 9, de 9 de novembro de 1995, extirpou do texto constitucional a Petrobrás como executora única do monopólio, mas manteve o monopólio da União sobre o petróleo, que pode explorá-lo diretamente ou por meio de concessões a empresas estatais ou privadas, inclusive de capital estrangeiro. O legislador ordinário modificou, assim, um dos princípios ideológicos originários estabelecidos pela Assembleia Nacional Constituinte, consagrando a vitória, pela via da emenda constitucional, dos derrotados na elaboração da Constituição de 1988.” (p. 41)

Em seguida, a Lei n. 9.478 de 6 de agosto de 1997 “retirou a competência da Petrobrás como única executora do monopólio estatal do petróleo e criou a Agência Nacional do Petróleo (ANP) como responsável pela [sua] gestão […]”. Deu-se, então, um momento capital nessa história:

“Embora tenha se comprometido a não privatizar a Petrobrás, com a aprovação da Lei n. 9.478/1997, o Governo Fernando Henrique Cardoso promoveu uma ‘privatização parcial’ da empresa, vendendo cerca de 180 milhões de ações que estavam sob o controle da União. A participação da União caiu de 82% para cerca de 51% do total de ações com direito a voto. Deste montante, apenas 25% foram adquiridas no Brasil, por 310 mil optantes do FGTS […]. O restante das ações foi vendido para investidores internacionais. Com essa operação, a Petrobrás obteve a incorporação de uma série de acionistas minoritários vinculados ao capital estrangeiro, pagando, segundo Carlos Lessa, dividendos a acionistas residentes no exterior em volumes muitas vezes mais elevados do que os salários ou juros pagos pela empresa. Esta alteração societária tornou a atuação da Petrobrás muito mais voltada para interesses comerciais, não necessariamente estratégicos, do que já vinha sendo até então”. (p. 42-43)

Na década seguinte, para os autores, o Brasil embarcou, praticamente sem reservas, no chamado “Novo Extrativismo”, “política que combina ativismo estatal e uma estratégia de crescimento fundada na exploração de recursos naturais com o suposto objetivo de ampliar a inclusão social” (p. 44). Nesse contexto, beneficiados pela folga fiscal propiciada pelo chamado “boom das commodities”, “[…] os governos ditos progressistas que assumiram o poder no Brasil em 2003 não alteraram nada do que foi feito no período anterior em relação aos recursos minerais. Embora existissem reivindicações pela revisão das privatizações e até pela reestatização da Companhia Vale do Rio Doce, nada foi modificado” (p. 46).

Adiante, no contexto do anúncio da descoberta do pré-sal, em 2006, que deu “novo alento” ao “debate sobre a apropriação do excedente das atividades de exploração de petróleo e recursos minerais”, aprovou-se no dia 22 de dezembro de 2010, nos últimos dias do Governo Lula, a Lei n. 12.351. Nas áreas consideradas “estratégicas” pelo governo, ela definiu um regime de contrato de partilha de produção no qual a Petrobrás “era a operadora de todos os blocos contratados sob o regime de partilha de produção, com participação mínima assegurada de 30% nos consórcios de exploração”, podendo ser ampliada mediante iniciativa do Ministério das Minas e Energia. A União também poderia contratar a Petrobrás, sem licitação, para “explorar e produzir em casos em que seja necessário preservar o interesse nacional e o atendimento dos objetivos da política energética” (p. 47).

Para os autores, criou-se então um regime dúbio, com áreas regidas pelos contratos de concessão (Lei n. 9.478/1997) e outras, mais novas, pelos de partilha de produção. Em todo caso, para eles, “muito pouco foi feito entre 2003 e 2016 para ampliar o controle nacional sobre recursos naturais estratégicos” e, a partir do golpe parlamentar que depôs Dilma Rousseff, Michel Temer pôs em marcha uma “política de desnacionalização […] extremamente rápida e agressiva” (p. 48) do que havia restado em poder do Estado.

Primeiramente, amparado no Plano Nacional de Desestatização de 1997 e na Lei n. 13.303 de 30 de junho de 2016, o governo começou a vender ativos da Petrobrás sem licitação. Já a Lei n. 13.365, de 29 de novembro de 2016, retirou a empresa como operadora única do pré-sal. No mesmo ano, Temer promoveu a adoção da Política de Paridade Internacional (PPI), segundo a qual os preços em dólares do petróleo e seus derivados no exterior foram tomados como referência para os preços internos, muito embora o Brasil produza internamente, com custos em reais, a vasta maioria do petróleo e derivados que consome. Essa política de repasse de custos e precificação em dólares foi mantida integralmente pelo atual governo.

Além disso, Temer e Bolsonaro liquidaram diversos ativos estratégicos da Petrobrás. Entre janeiro de 2015 e julho de 2021, segundo reportagem da Infomoney, foram arrecadados 231,5 bilhões de reais com a venda de campos, termoelétricas, companhias energéticas regionais, refinarias (como a Landulpho Alves, na Bahia) e a Gaspetro (gasodutos). Canadá (27,8%) e França (20,1%) foram os principais compradores desses ativos, com o Brasil apenas em terceiro lugar (14%). Ainda naquele último mês, a empresa concluiu a venda das suas ações na BR Distribuidora – segundo a Agência Brasil, da EBC, também em sua maioria para compradores estrangeiros –, arrecadando pouco mais de 11 bilhões de reais. Esse valor é menos de três vezes superior aos quase quatro bilhões de lucro líquido obtidos pela subsidiária apenas em 2020.

Como resultado disso tudo, concluem os autores:

“O plano de negócios da Petrobrás tem viés de curtíssimo prazo e ignora a essência de uma empresa integrada de energia que usa a verticalização em cadeia para equilibrar suas receitas, compensando a inevitável variação do preço do petróleo, de seus derivados e da energia elétrica, característica essencial para minimizar os riscos empresariais. Na medida em que a Petrobrás seja fatiada, o agente privado tende a buscar o lucro máximo por negócio, majorando os custos ao consumidor […].” (p. 50)

Diante disso, precisamos reconhecer que a Petrobras foi privatizada na prática, embora sem transferência total dos seus ativos para agentes privados. Primeiramente, no final dos anos 1990, privatizou-se parte expressiva do seu capital. Embora naquele momento a União tenha conservado parcela controladora, hoje, segundo a Associação de Engenheiros da Petrobrás (AEPET), estrangeiros já detém 42,79% das ações da empresa, contra 36,75% do governo brasileiro. O fato da Petrobrás ter suas ações comercializadas na Bolsa de Nova York, por outro lado, põe a empresa diretamente sob a jurisdição da justiça dos Estados Unidos, a obrigando a pagar indenizações bilionárias aos seus acionistas conforme vimos no desenrolar da Operação Lava Jato.

Em seguida, foram liquidadas – via de regra a preços vis, equivalentes a doações – as suas principais subsidiárias, havendo ainda previsão de venda das refinarias remanescentes nos próximos anos. Com isso, vem sendo desarticulada toda a estrutura vertical montada, ao longo de décadas, desde a prospecção das jazidas e a extração dos poços até a chegada dos produtos finais aos consumidores. Por fim, privatizou-se a gestão, hoje inteiramente alinhada com os preços internacionais e voltada exclusivamente para a maximização dos lucros.

O resultado disso é uma empresa que vem tributando violentamente a sociedade brasileira, promovendo aumentos abusivos de preços por bens básicos que impactam profundamente as cadeias produtivas, de abastecimento e a vida da população. Uma empresa, também, que obtém centenas de bilhões de reais com a liquidação dos seus ativos e afere lucros estratosféricos, transferindo enorme parte desses recursos para os seus acionistas. Por fim, uma empresa que já se comporta de forma plenamente privada, inteiramente orientada para a sua própria rentabilidade em detrimento das condições de bem-estar social, desenvolvimento e soberania do país, propósitos originais da sua criação.

Em suma, o que assistimos é um roubo à luz do dia. O “mal estar” de Bolsonaro deve-se apenas à “contradição” que ele quer resolver: “privatizar” o que sobrou de uma empresa ainda vista como pública, mas que na prática já é privada e que não responde aos seus comandos. Como lhe é típico, o que ele quer é apenas deixar de ter que responder pelos seus atos. É se isentar de mais uma responsabilidade quanto aos destinos do Brasil e do seu povo, com os quais nunca se importou nem jamais se importará.

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