O desafio de Ciro Gomes é rachar o Centrão com Doria e Bolsonaro

Terminadas as eleições municipais, o quadro na esquerda é mais ou menos o mesmo de antes como previsto. Ciro Gomes segue com sua aliança de centro-esquerda cada vez mais consolidada, o PCdoB avança no sentido da extinção, o PSOL cresce para dentro do petismo, e o PT se isola cada vez mais.

Na extrema-direita, Bolsonaro não é capaz de articular forças partidárias e está bloqueado institucionalmente tanto no Congresso submetido ao fisiologismo do baixo clero do Centrão como pelo Supremo Tribunal Federal, onde lavajatistas e defensores da política fazem uma frente amplíssima contra qualquer golpismo do presidente. O bolsonarismo, porém, continua forte e tende se tornar uma constante sociológica e cultural no Brasil, e não apenas um gueto digno de desprezo como era até 2013. Moro igualmente não foi capaz de organizar forças políticas, e só pode contar com a Globo, O Antagonista e os dólares norte-americanos para continuar um ator relevante no Brasil.

A direita neoliberal tradicional, jogada para o centro pelo bolsonarismo, se recuperou bastante e consolidou um bloco forte para 2022 a partir de São Paulo como sempre. A aliança PSDB/DEM/MDB/PSD em torno de Doria praticamente enterrou os caprichos de Luciano Huck, que agora vai ter que se humilhar em uma gincana como as que apresenta aos sábados por uma mera vaga de vice se quiser participar da brincadeira.

No entanto, o jogo é mais complexo devido às disputas internas e entrelaçadas nesses três grandes blocos.

Lula continua com força nos rincões do país, mas Bolsonaro cada vez mais entra nesse eleitorado, pois importa menos a cor da bandeira partidária, e mais os efeitos concretos do assistencialismo, com vantagem para o atual presidente devido à potência ideológica da religião na população mais pobre. A classe média de esquerda se divide entre o patriotismo partidário petista que ainda é forte, o moralismo e identitarismo do PSOL, e ainda o voto de opinião programático em Ciro Gomes que leva o establishment artístico liderado por Caetano Veloso e o pensamento desenvolvimentista entre os economistas.

Com PT e PSOL isolados à esquerda, a despeito da vontade de Lula que gostaria de retomar o diálogo com o centro e não com a pequena-burguesia radicalizada, Ciro Gomes é quem concentra o potencial de liderar uma Frente Ampla com setores centristas para enfrentar o bem-sucedido populismo bolsonarista e a reorganização do neoliberalismo mais de direita de Doria.

O governador de São Paulo tem força devido ao peso econômico do estado, porém, ao contrário de Alckmin, ele não é um quadro tradicional e bem relacionado nacionalmente. O DEM, apesar de ter se fortalecido como partido mais importante do Congresso controlando as duas casas, é um partido carioca e nordestino, dois locais onde Doria não é bem quisto. No entanto, Doria foi capaz de criar uma sólida aliança com Rodrigo Garcia como vice-governador, que por sua vez, apesar de filiado ao DEM é ligado a Gilberto Kassab, presidente do PSD. E ainda conta com o MDB, do vice-prefeito eleito na capital. Portanto, a candidatura Doria com esse apoio tradicional selado em São Paulo é irreversível.

No entanto, o PDT de Ciro Gomes obteve resultados satisfatórios, continuou como o partido com mais prefeitos e vereadores da esquerda, e suas alianças com o PSB e o DEM avançaram sobre o lulismo no nordeste, vencendo em Fortaleza, Recife, Aracaju, Salvador, Maceió, e diversas outras cidades. No Maranhão, o PDT se tornou o maior partido elegendo 42 prefeitos, 67 no Ceará, 34 em Minas Gerais, e 65 no Rio Grande do Sul.

Desse modo, com uma aliança já consolidada entre PDT/PSB/REDE/PV, Ciro Gomes se torna atrativo para os setores do Centrão que estão com Bolsonaro apenas por oportunismo orçamentário ou com Doria pela hegemonia de São Paulo. Em 2018, Alckmin conseguiu unificar todo esse bloco que apostou em uma inédita unidade, além da forte atuação de Lula e do então presidente Temer para isolar Ciro Gomes. Dessa vez nenhum desses fatores está presente. Doria não é bem visto no Rio e no nordeste como um unificador tradicional da hegemonia paulista como eram Serra ou Alckmin, Temer e os líderes do Centrão que são desafetos de Ciro estão todos presos ou irrelevantes, e Lula está totalmente isolado e bastante enfraquecido.

Assim, esse bloco de Ciro já é mais forte do que sua candidatura de 2018 que mesmo totalmente isolado ficou em terceiro lugar com mais de 13 milhões de votos. Mesmo diante da poderosa frente de centro-direita de Alckmin, Ciro conseguiu apoios importantes como do popular prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil do PSD, que se reelegeu com mais de 60% dos votos no primeiro turno este ano. Apesar da aliança de Kassab com Doria, Kalil tende a ser ainda mais forte em 2022 e apoiar Ciro novamente.

ACM Neto e Rodrigo Maia do DEM também têm excelentes relações com Ciro Gomes, inclusive, os dois já disseram mais de uma vez que ele deveria ter sido o candidato do blocão em 2018. Os dois vão se submeter à hegemonia paulista, porém, se Ciro se mostrar viável com sua coligação de saída PDT/PSB/REDE/PV, atrair mais partidos pequenos, como o Avante que já o apoiou em 2018, o Solidariedade da Força Sindical, e ainda outros do baixo clero que estão submetidos a Bolsonaro, é plenamente possível que no Rio de Janeiro e na Bahia, o DEM monte palanque para Ciro e não para Doria, assim como o PSD em Belo Horizonte.

Esse cenário já é imaginado abertamente devido às alianças entre DEM e PDT na eleição para presidente da Câmara e em Salvador, e um chapão alternativo a Doria e Bolsonaro pode até atrair partidos maiores como o PP do ex-lulista e bolsonarista de ocasião Ciro Nogueira e do coronel do aço Benjamin Steinbruch, e até mesmo o PL de Josué Gomes, filho do ex-vice-presidente José Alencar. Os dois últimos foram cotados para serem vices de Ciro Gomes se o bloco de centro tivesse optado por sua candidatura.

O PCdoB, que buscava respiro com Manuela em Porto Alegre e Flávio Dino no Maranhão foi terrivelmente derrotado. O governador maranhense e seu porta-voz em Brasília, Ricardo Cappelli, inclusive abandonaram o discurso de Frente Ampla com Luciano Huck, Felipe Neto, com Supremo com tudo, e agora defendem Frente de Esquerda com Lula/Ciro/Boulos/Dino. Isso se dá por pura sobrevivência, e não por ingenuidade. A tendência é que Manuela vá para o PT e o PCdoB do nordeste se funda ao PSB a partir de Pernambuco, onde na prática isso já acontece devido à aliança inquebrantável dos comunistas com a família Campos. Dino poderá escolher tentar o Senado pelo PT ou PSB, e deve escolher o segundo, onde seria mais relevante.

A correlação de forças se alterou a favor da centro-direita, mas também fortaleceu a centro-esquerda dentro de seu campo. O PSOL praticamente não joga papel nesse arranjo, seu crescimento é um problema para o PT, que mais uma vez não tem opção de não ter candidato para apoiar uma Frente Ampla ou mesmo a Frente Sectária com Boulos, pois precisa manter sua poderosa bancada no Congresso e suas cidadelas regionais. E não adianta vir com moralismo e exigir que o PT abra mão disso, política é correlação de forças e não competição de virtudes morais. Mas dessa vez o futuro é ainda mais sombrio para os petistas que devem perder a Bahia, pois Rui Costa não tem sucessor, e ACM Neto, além de muitíssimo popular após 8 anos de sucesso como prefeito da capital, terá uma gigantesca Frente Ampla para disputar o governo estadual.

Para resumir, o desafio de Ciro Gomes é manter sua aliança de centro-esquerda PDT/PSB/REDE/PV (que provavelmente contará com o reforço do PCdoB dentro do PSB), atrair o baixo clero do Centrão (por exemplo, Solidariedade, Avante, PMN, PROS, etc), e partindo desse chapão, atrair os fortes palanques do PSD, DEM, PP, PL, etc., que não queiram se submeter à hegemonia paulista. Isso tudo é possível, apesar de improvável, e exige muito sangue frio, articulação, negociação, concessão, e até mesmo investimento volumoso em redes sociais para se apresentar como viável eleitoralmente nessa nova e incontornável arena de disputa política.

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