GUSTAVO CASTAÑON: Adeus, Lula!

Como todos os brasileiros de minha geração, tenho Lula como uma referência básica na minha memória. Todos têm, para o bem ou para o mal. Lula era um bicho papão de minha infância de classe média pequeno-burguesa que prosperou na ditadura, era a esperança de minha juventude em acabar com o neoliberalismo, era o poder em parte da minha vida adulta quando queria estabilizar minha vida profissional, e é um grande problema hoje quando tentamos olhar para o futuro e deixar um país para nossos filhos. Nem eu, nem qualquer brasileiro pode ser indiferente a esse personagem histórico.

Minha vida foi muito diferente da dele, talvez por isso ainda o respeite, embora muitos fanáticos petistas me acusem de odiá-lo. Enquanto tive pai e mãe que me amaram e criaram, Lula teve só mãe. Nunca conheci a fome, Lula conheceu. Embora tenha passado a maior parte da minha vida na escola pública, tive oportunidade de fazer faculdade e mudar de carreira algumas vezes, Lula teve que agarrar o que a vida lhe deu.

Já os bolsominions me acham um petralha e um lulista, porque não o chamo de ladrão nem desejo sua morte. O segundo aspecto não é uma vantagem, já o primeiro, a questão da legalidade ou não de suas ações, o problema da corrupção, simplesmente não quero abordar. Não quero contaminar meu grave questionamento político de Lula com apreciações de ordem moral ou legal.

Mas poderia.

Você, lulista fanático, sabe disso.

Já cheguei a achar Lula um grande brasileiro. Julgo o tamanho das pessoas pela diferença entre o que receberam da vida e o que deram a ela. E Lula não recebeu muita coisa da vida. Até 2010, apesar de todos os seus grandes erros e da presidência medíocre, o saldo dele era espetacular. Nos últimos dez anos, foi destruído.

Todo brasileiro que, como eu, deseja um país mais justo e menos desigual, gostando ou não do PT, apostou muito em Lula, por muito tempo. Desde que superou Brizola no campo progressista, ele não nos deixou outra opção, literalmente. Mas no poder, Lula nos traiu em grande medida.

É fato que dirimiu a fome com políticas de renda mínima que sequer tornou constitucional, aumentou o acesso a universidade para alunos de baixa renda (para alguns em novas federais) que, em sua maioria, se endividaram para isso, aumentou um pouco o salário mínimo e… só. Não me lembro, realmente, de mais nada que tenha feito para fazer jus a vinte e cinco anos nos quais os progressistas dedicaram todos os seus esforços para elegê-lo e sustentá-lo. Nossa desigualdade com ele se manteve igual, nossa injustiça tributária se manteve igual, nossos juros reais continuaram os mais altos do mundo, nossa dependência internacional piorou, nossa indústria minguou.

No poder Lula não traiu só nossos sonhos e vinte anos de trabalho e construção da esquerda brasileira, mas também nossos princípios. Mas não vou entrar nisso aqui. Seu principal problema foi ter se dedicado não à transformação do país, mas a um projeto mesquinho e fisiológico de poder. Para isso, se tornou o campeão do rentismo e dos bancos, como, com escárnio com minha geração, gosta de repetir e se gabar. Assim como também se tornou o operador do loteamento do Estado para as quadrilhas que vivem de saquear o erário em Brasília. Em troca não recebeu nada para o país, somente mais tempo de poder.

Como se não bastasse, aquele Lula que surgiu do superpolitizado PT dos anos 80 rebaixou a política brasileira a um personalismo messiânico imbecilizador e despolitizante. Reduzindo as bandeiras da esquerda ao apoio a ele e seu partido, e esse último a mero incorporador de franjas da população ao mercado consumidor via crédito e bolsas governamentais, continuou agarrado aos símbolos vazios da esquerda e com isso os destruiu no país.

Por fim, Lula fora do poder, piorou muito. Continuou tentando submeter todos a sua vontade. Obrigou Dilma a fazer o acordo com a banca nacional, para não sofrer golpe em 2015, que traiu mais uma vez nossos votos e quebrou o país, provocando o golpe. Depois ainda se acovardou diante da perseguição judicial se entregando à justiça, tudo para não pedir asilo político e perder o controle sobre a esquerda na sucessão presidencial.

Perdendo, lançou um candidato inviável, que tinha perdido uma reeleição para prefeitura com o voto de pouco mais de dez por cento dos eleitores e se sagrado o prefeito mais impopular do país há menos de dois anos. Fez isso só para provar seu poder de transferência de votos e impedir a ascensão de outra liderança, a de Ciro, na centro-esquerda. Ele sabia que o PT não teria condições políticas nem de ganhar nem de governar, mas mesmo diante da perspectiva de entregar o país para Bolsonaro, não recuou. Jogou conscientemente para perder, para manter o partido liderando a oposição a um governo que sabia que destruiria o Brasil.

Não adianta Lula agora culpar Ciro ou FHC pela eleição de Bolsonaro. Ciro e o PDT transferiram quase 90% dos seus votos para Haddad no segundo turno, apesar de todos os crimes que o PT cometeu contra nós na campanha. FHC não tinha mais votos a transferir, os 5% que restaram ao PSDB foram automaticamente para Bolsonaro. O único personagem político brasileiro que há dois meses da eleição tinha o poder de decidi-la por uma renúncia, era Lula. Ciro não tinha esse poder, porque o PT já tinha perdido o segundo turno pra presidente desde 2016. É por isso que a culpa da eleição de Bolsonaro é de Lula. Porque só ele poderia a ter evitado. Ciro não poderia dar a Haddad os votos que não conseguiu sequer para si mesmo no primeiro turno. Estando em Lisboa, Paris, Sobral ou Marte, o resultado seria o mesmo e todos sabem disso.

O resultado do jogo de poder de Lula está aí.

Hoje todas as poucas e superficiais conquistas de seu governo estão destruídas, em grande parte pelas consequências de suas ações. Seu saldo com a vida, está muito prejudicado.

Lula ainda é o mesmo ser humano que entrou num pau de arara para fugir da fome e chegou à presidência. Mas também é o mesmo ser humano que jogou fora a maior chance que o Brasil teve em sua história. O mesmo ser humano que pegou anos de trabalho político e organizacional da esquerda para negociar acordos de rendição sem fim até a derrota final. O mesmo ser humano que no poder se acumpliciou com os esquemas de financiamento privado de campanha para controlar todos os partidos à esquerda do espectro político e os destruir.

Quem é o Lula como pessoa não me interessa, não o conheço, não convivo e não quero conviver com ele. De mais a mais eu não posso julgar isso, só quem pode é Deus. Não há nesse texto um único adjetivo dirigido à pessoa de Lula, apesar de petistas que eventualmente tenham começado a lê-lo provavelmente já terem o abandonado nos primeiros parágrafos, me chamando de antipetista de me acusando de ódio ao Lula, para ficar nos elogios.

Não dou a mínima.

Não tenho ódio ao Lula, mas assumo que tenho ressentimento, humano, compreensível.

Lula jogou fora anos de luta da minha vida, de toda minha geração.

Isso não é uma coisa trivial, uma ofensa qualquer, uma simples traição.

Mas o objetivo aqui não é repisar o passado.

É ajudar a acordar as pessoas para a necessidade de um futuro sem Lula, que não pode esperar por sua morte, mas tem que começar agora, já.

Se minha geração foi traída por Lula, a parte progressista da geração dos meus pais dedicou a vida a sua liderança. Entendo que para os mais velhos seja difícil reconhecer o enorme fracasso dos esforços de uma vida inteira.

Na vida nos apegamos muito mais a nossos fracassos do que a nossos sucessos. Isso é porque precisamos dar sentido ao tempo de vida que perdemos dedicados a projetos que malograram. O valor das coisas para nós é diretamente proporcional ao tempo que dedicamos a elas.

Mas vocês, que ainda tem uma vida pela frente, tem que ser capaz de olhar para o futuro e parar de tentar dar um sentido ao nosso passado.

As novas gerações exigem isso de nós.

Elas merecem ter uma vida.

E se Lula não está interessado em dar passagem para esse futuro, por Deus, nós vamos reunir a força suficiente para obrigá-lo a isso, tenham certeza.

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