A propósito da greve: Lula e a cíclica orfandade das esquerdas

A proposito da greve Lula e a ciclica orfandade das esquerdas

Há dois meses, técnicos administrativos e professores da rede federal estão em greve. Finalmente, o presidente Lula quebrou um silêncio de semanas e se pronunciou contrário ao movimento. A resposta, óbvia para os que leem o que Lula sempre foi e continua sendo, chocou os paredistas mais engajados, que parecem ainda flutuar na atmosfera eleitoral em que o ursinho do amor venceu o demônio fascista.

O movimento grevista atrasou o quanto pôde o ataque direto ao ministro Camilo Santana e ao presidente, preferindo condenar o mensageiro Feijóo, secretário do Ministério da Gestão e da Inovação, chefiado por Esther Dweck, que tem atuado nas negociações, por oferecer contrapropostas indecorosas. Mas, agora, já está clara a unidade governamental do vilipêndio: Feijóo, Esther Dewck e Santana são todos Lula.

Em um primeiro comentário, ainda no início das reivindicações, Lula havia dito publicamente que direito à greve todos têm, que ele se irradia de felicidade em poder receber grevistas, mas que isso não seria atender à pauta reivindicada. Após semanas de reuniões e nova proposta rechaçada pelos sindicatos, Lula concluiu outra intervenção pública dizendo que é fácil ser corajoso para deflagrar greve, mas que gostaria de ver se tem grevista corajoso o suficiente para encerrar a paralisação. Quer dizer: em duas falas, duas manifestações distintas de escárnio.

É desagradável despontar quem insiste em esperar outra coisa de Lula, mas ele é o que é. Não é e nunca foi o que os teatros eleitorais fantasiam. Ele é um empreiteiro vaidoso, não um estadista visionário. Quer levantar prédios, expandir estradas, construir pontes e canais. Encara com tédio e desdém os pouco rentáveis exercícios de longo prazo, como organizar a educação federal. Muito mais empolgante, por ser fácil e vistoso, lhe parece criar novos IF’s. Quer gastar dinheiro com obras de apelo popular, não inovar em instituições. Mal comparando, o presidente está mais para um Washington Luís do que para um Getúlio Vargas.

Sua ambição, nesse terceiro mandato, é passear pelo mundo em busca de algum conflito de cuja trégua ele pudesse figurar como mediador e em virtude do quê, posteriormente, ser instado a um Nobel da Paz. No Brasil, sua única urgência é o difícil eleitorado evangélico, que não desfaz a predileção por Bolsonaro. Nada indica que professores, majoritariamente esquerdistas, estejam entre as suas preocupações. Afinal, no frigir dos ovos, votarão no PT ou no PSOL – que é o mesmo que votar com o PT. O desprezo de Lula, sempre visto, vivido e esquecido pela comunidade de professores da rede federal, é experienciado como se fosse a primeira vez, chegando com o amargor de um abandono parental. Mas é o mesmo abandono de outras ocasiões, praticado em desfavor de quem o apoia e até o endeusa. Eis o que se poderia chamar de uma orfandade cíclica.

Falemos da mentalidade desses órfãos que, de novo, padecem com o menoscabo de Lula. Da redemocratização para cá, mas sobretudo após a Era FHC, a consciência político-ideológica média do professor das Universidades – e, depois, dos Institutos Federais – pode ser tipologizada – e, vá lá!, toda tipologia traz riscos – como a conciliação de um criticismo com um desconstrucionismo, combinados com uma inclinação socialdemocrata na política real.

O criticismo é o elemento mais geral dessa mentalidade. É a premissa anti-ocidental e anti-moderna com que se acusa o capitalismo de ser a causa de todas as injustiças de que sofre o Brasil – enquanto uma variante latina do capitalismo mundial. O desconstrucionismo é um marco teórico procedimental. Ele está na crença, também embutida nesse imaginário, de que a tarefa que cabe a quem identifica a causa das injustiças é sabotar as engrenagens do sistema, corromper seu funcionamento, ruir suas estruturas, sendo este um empreendimento denuncista. Com tal sensibilidade, os ativistas estão com os radares prontos para captar os reprodutores das desigualdades e oportunamente etiqueta-los com a palavra mágica: opressor. Pude tratar disso com o cientista político Carlos Sávio Teixeira nos textos A Igualdade Como Problema, A Grandeza Como Solução e O Construtivismo Institucional e a Democracia Brasileira.

Esses dois aspectos da consciência do acadêmico são visceralmente reativos e, por assim dizer, negativistas, ou seja, prestam-se a destituir um dado estado de coisas, não a pôr outro. O expediente programático, de há muito, deixou de ser manejado na cultura universitária, ou, ao menos, de ter prioridade nela. Mas a política real é feita de construção: de propostas, acordos e conquistas. A incompatibilidade maciça entre o criticismo desconstrucionista e a democracia representativa partidária existente acossa a mentalidade acadêmica média ao beco do esquerdismo possível, cuja agenda de desilusões quanto à exequibilidade do socialismo e de pavor ao neoliberalismo é composta de pautas, conscientemente ou não, socialdemocratas. E que não se confunda a socialdemocracia clássica alemã com esta. Aqui, o que se tem é a socialdemocracia da retórica dos direitos concedidos sob pretexto de que o estado cuide de corrigir retrospectivamente as desigualdades que o mercado, inevitável em seus termos, gera. O esquerdismo possível é uma política barulhenta e fria em seus efeitos.

De quinze anos para cá, um elemento deu gás novo ao ativismo nessas instituições de ensino – como a compensar a frieza e a esterilidade da agenda socialdemocrata em espíritos tão energizados feito os dos jovens alunos e dos professores, estes que se sentem rejuvenescidos justamente em greves. O elemento em questão é o identitarismo. Doravante, com a pauta da inclusivismo modulado (não inventado) pelos identitários, alguma contribuição objetiva pôde ser dada pela militância universitária à política real, qual seja, minimizar os danos causados aos oprimidos numa sociedade desigual, conferindo maior representatividade a mulheres, gays e negros e estimulando a autoimagem de identidades de grupo em experiência de resistência às opressões. O binômio normativo predominante, então, é resistência (nome, aliás, da cadela de estimação de Janja) e representatividade. A consciência média dos cultores da academia torna-se como é agora: politicamente socialdemocrata e ideologicamente identitária. Também sobre esse tema, tive a oportunidade de refletir com o politicólogo Carlos Sávio Teixeira no texto Contra a Mediocridade, Contra o Identitarismo.

Os momentos em que essa consciência mais tem se aflorado são os períodos eleitorais, especialmente no que concerne à eleição de presidente e congressistas. É quando o país mais se dedica às fofocas e polêmicas promovidas por jornalistas e políticos profissionais. Com Bolsonaro, o canalizador de tudo o que a comunidade acadêmica, em sua maioria, repudia, o criticismo desconstrucionista chegou ao ápice de coesão quanto à leitura dos fatos políticos e as expectativas de transformação do país. Mas não esqueçamos que mesmo na campanha de Aécio contra Dilma, em 2014, muitos dos elementos da atual concórdia universitária, e que envolvia a satanização tucana, foram evocados. O que se viu em 2022, 18, 14, tinha um germe em comum, o mesmo, aliás, de 10, 06, 02, 1998, 1994, 1989: Lula.

O presidente esteve no centro de todas as oportunidades em que a sensibilidade média que atribuo aos típicos professores da rede federal foi aflorada e construiu nelas as condições para consolidar seu monopólio de personagem político “de esquerda”. Mesmo ressabiados com o que estão chamando agora de “descaso do governo”, nunca esquecerão do filme em que Lula sobe a rampa do Planalto com um índio, uma mulher, um negro, um portador de deficiência e uma criança, como se ele tivesse elevado aquelas identidades resistentes e lhes presenteado com a dignidade da representação – o afeto paternal é irresistível.

Nenhum outro partido ou candidato de esquerda ou centro-esquerda teve viabilidade eleitoral desde que Lula e o PT chegaram ao centro do poder em 2002. Foram defenestrados, trapaceados, sabotados e enganados por eles personagens como Leonel Brizola, Marina Silva e Ciro Gomes. O argumento da ausência de viabilidade eleitoral é também um efeito narrativo criado pelo partido de Lula para escantear concorrentes de mesmo espectro político. A propósito, talvez tenha sido o maior golpe de marketing da política brasileira recente a proposição de que, se não for o PT, o Brasil viverá o inferno. Bem me lembrou o meu amigo Rodrigo Ornelas, filósofo e psicanalista, que poucos discursos pegaram tanto quanto o do slogan: “não é hora de atacar o PT”. De fato, a recorrência desse palavreado está em toda a parte, e, embora em eleições isso se torne mais agudo, depois delas seu eco fica como que se refletindo pelas paredes de nossa memória coletiva.

Entre os que embarcam nesse papo estão, claro, os atuais grevistas. Quem, como eu, vive nessa comunidade, viu o comportamento no período eleitoral de 2018, quando Lula estava no cárcere, e em 2022, quando voltou para “redimir o povo” do bolsonarismo. Lá, era melhor votar em Haddad (o “Andrade” no povão), para nos prevenir do fascismo. Cá, foi preciso votar em Lula, para o fascismo não se instalar definitivamente no país. Com o monopólio da viabilidade eleitoral de esquerda e a ameaça de um perigo constante, Lula encobre o fato de que foi graças ao PT que Bolsonaro se tornou nacionalmente plausível e é graças ao PT que ele se mantém viável.

Voltando ao problema do impasse: Agora, quando os grevistas dizem: “São seis anos sem aumento”, o governo desleixadamente responde: “Ora, vocês tiveram aumento de 9% no primeiro ano de governo”. Os sindicatos retrucam: “Mas esse valor estava previsto na lei orçamentária de 2022, não pode ser argumentado como mérito do governo”. O MEC dobra o cinismo: “Mas com o governo anterior vocês não tiveram nada e conosco terão aumento nesse e nos próximos dois anos”. Os paredistas optam por contra-argumentar: “Mas não há ganho real com a inflação acumulada em seis anos, são 9% para amortecer 30%”. O governo lava as mãos e se volta para a imprensa e para a opinião pública: “Fizemos o possível e os grevistas seguem condenando alunos e famílias enquanto recebem seus salários de servidores públicos”.

O movimento não prossegue sem melancolia. Lula deu a punhalada mais precisa, a que outorga os manifestantes ao desolado canto “você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão”. Deixa a comunidade órfã duplamente, de si e de qualquer apoio da sociedade civil. Só uma nova eleição presidencial para que o professorado criticista desconstrucionista e socialdemocrata possa ter esperança de ser adotado novamente.

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